segunda-feira, 31 de março de 2008

Sutilezas do Datafolha

As eventuais candidaturas de Gilberto Kassab e Geraldo Alckmin tiveram origens comuns. Ambos chegaram a cargos executivos graças a políticos do PSDB (Kassab foi inventado por José Serra e Alckmin por Mário Covas) e beneficiaram-se da coligação PFL/Dem/PSDB que governa o Estado há uma vida e a capital há oito anos. Possuem praticamente o mesmo apelo ideológico, os mesmos redutos, a mesma militância e provavelmente os mesmos financiadores.
Até os urubus do Tietê sabem que os dois pretendentes à Prefeitura disputariam o mesmo espaço político-eleitoral, numa luta fratricida que favoreceria outros candidatos, particularmente Marta Suplicy. Seria tamanha inabilidade que os observadores mais prudentes desconfiam que a atual encenação de independência esconde um jogo-do-pisca para decidir quem consegue levar seu blefe por mais tempo.
E agora pergunta-se: por que, no Datafolha divulgado ontem, não havia um cenário no qual Alckmin ou Kassab disputariam sozinhos o primeiro turno? A possibilidade mais plausível (ainda) simplesmente foi ignorada pelos planejadores da enquete. Arrisco um motivo singelo: há um aspecto muito negativo desse embate Alckmin/Kassab, e já diagnosticado por levantamentos não divulgados. Talvez a transferência de votos, na ausência de um deles, favoreça Marta numa proporção maior do que gostaria a direção do Datafolha.
O famoso instituto sempre dá suas cabeçadas. Na eleição presidencial de 2002, quando pairava a dúvida sobre a possibilidade de Lula ser eleito já no primeiro turno, o Datafolha simplesmente não divulgou pesquisa de boca-de-urna, caso inédito na sua trajetória. Hoje ela consta de seu sítio na internet, mas a Folha do dia da eleição não a publicou. A decisão permaneceu ainda mais incompreensível depois que as bocas-de-urna voltaram a ser divulgadas, nos pleitos seguintes - inclusive aquela, já famosa, dos 50% redondos tanto para Lula quanto para os outros candidatos somados (um empate estatisticamente improvável), no primeiro turno de 2006.
Hoje sai um levantamento sobre a eleição de 2010. Não me lembro do instituto ter realizado pesquisas com tal antecedência (no seu sítio da internet não existem referências a elas), mas a manchete “Serra mantém favoritismo para 2010” dispensa maiores especulações. Esse tipo de já-ganhou eleitoral, com dois anos de antecedência, em plena fritura pública de Dilma Roussef, é manobra evidente para induzir o eleitorado à presunção da vitória tucana inevitável. É a chamada “expectativa de vitória”, que os institutos e as agências de publicidade valorizam muito: a tendência da maioria do eleitorado é de votar em candidatos presumivelmente vitoriosos, independente de inclinações partidárias. O povo quer se associar a vencedores.
O problema com institutos de pesquisa é que não são obrigados a divulgar todos os dados aferidos por seus funcionários. Eles possuem informações prévias importantíssimas para a preparação de pesquisas mais abrangentes, cujo teor virá a público. As pesquisas “para consumo interno” influenciam as outras. Portanto, só sabemos o que alguém julgou conveniente que soubéssemos.

domingo, 30 de março de 2008

A responsabilidade pela cratera

Em bom artigo publicado hoje na Folha (num esconderijo do caderno Cotidiano), o geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos critica a tentativa de conferir ao desabamento do metrô paulista uma aura de fatalidade natural. De fato, a grande imprensa (Folha, principalmente) quase ignorou o parecer técnico do Ministério Público Estadual, que apontou falhas nas obras, mas concedeu grande destaque a um laudo encomendado pelo próprio consórcio responsável pela construção, isentando-o de responsabilidades. Desnecessário lembrar que culpa "natural" é culpa difusa, "de ninguém", levando à absolvição completa do governo Serra e das empresas contratadas por ele para realizar a obra.
Incluo o artigo abaixo, para disponibilizá-lo também aos não-assinantes.

Acidentes: é um erro perigoso culpar a natureza

Quando do acidente da estação Pinheiros da linha 4 do metrô paulista, divulguei artigo dentro dessa mesma temática. Hoje, com o início da divulgação dos laudos encomendados para o diagnóstico do referido acidente, sinto-me obrigado a voltar ao tema. E, da mesma maneira, não me move a intenção de acusar ou julgar nenhuma das partes envolvidas, ou sequer contrapor-me a qualquer opinião publicada sobre as causas do acidente. Move-me apenas a intenção de esclarecer o papel e resguardar a imagem da geologia e da engenharia brasileiras, como também colaborar para que esse, como os demais acidentes, ao menos cumpram sua intrínseca função histórica de proporcionar o avanço dos conhecimentos técnicos e gerenciais relacionados a empreendimentos de engenharia.
O que ocorre de êxito ou fracasso em uma obra de engenharia está intimamente associado à ação humana. Não é correto que se debite comodamente a fatores da natureza ou a deuses e demônios responsabilidades que são intrinsecamente humanas. Esse cacoete de se lançar a responsabilidade por um problema mais sério a imprevistos geológicos ou pluviométricos é, em sua essência, desprestigioso com os profissionais da engenharia brasileira.
Frente à insistente repetição dessas fáceis e comuns explicações, questiona naturalmente a sociedade: "Mas, afinal, para que servem então engenheiros, geólogos e arquitetos, se uma obra é assim tão vulnerável a esses tais imprevistos geológicos ou pluviométricos? Onde raios eles estavam que não perceberam isso?". Mais, satisfazer-se em culpar a natureza e não identificar as verdadeiras causas de um acidente constitui um ato conivente com a real possibilidade de ocorrência de novos acidentes similares.
Obviamente há casos, a cada dia mais raros, em que possam surgir fatos geológicos e geotécnicos novos, especialmente quanto a comportamentos ainda desconhecidos ou pouco conhecidos de certas feições ou materiais geológicos. No entanto, com a experiência acumulada no conhecimento geológico-geotécnico proporcionado pela implantação de seguidos e diferenciados empreendimentos, no Brasil e no mundo, e especialmente em regiões geológica e geotecnicamente já bastante conhecidas e mais intensamente afetadas por empreendimentos, como é o caso da região metropolitana de São Paulo, essa possibilidade tende exatamente a zero. Por fim, não poderemos erroneamente caracterizar como um imprevisto geológico uma feição geológica que poderia e deveria ter sido detectada preliminarmente ou no andamento da própria obra e não o foi, por alguma deficiência de procedimentos e investigações.
Na engenharia, há uma regra inexorável: se houve acidente, houve uma falha. Essa falha pode ser de diversas ordens: erros nas investigações e informações técnicas (dados de entrada) para o projeto, erros de projeto, erros no plano de obra, falhas nos processos construtivos, deficiência em materiais empregados... A redução da margem de ocorrência de erros é uma meta que a boa engenharia persegue com obstinação dentro de uma verdadeira cultura e procedimentos de segurança. E, ao lado de uma provada competência dos técnicos envolvidos, o maior instrumento para essa redução está em um eficiente e onipresente plano de gestão técnica do empreendimento, desde a fase dos estudos preliminares até a entrega da obra acabada e seu futuro plano permanente de monitoramento técnico.
No caso da geologia, até a probabilidade de se encontrar durante o andamento da obra alguma feição particular não anteriormente detectada deve, obrigatoriamente, ser considerada nos cuidados do plano de obra e dos processos construtivos, que, para tanto, devem sempre ser acompanhados por um consistente programa de monitoramento e investigação geológica complementar.
Sempre lembrando que a frente de obra constitui a oportunidade mais espetacular e propícia para a confirmação ou não dos levantamentos anteriores, como para investigações complementares que se mostrem convenientes.
Ou seja, em defesa dos profissionais brasileiros em hidrologia, hidrogeologia, geologia e geotecnia, que colocaram o país em nível internacional de competência nessas áreas, e em defesa dos interesses maiores da sociedade brasileira, apelamos às autoridades públicas e privadas. Autoridades relacionadas a qualquer tipo de acidente em obras de engenharia que não capitulem diante dos impulsos naturais em buscar explicações e justificativas que lhes eximam de alguma responsabilidade e tenham a disposição de colocar em questão também fatores não diretamente técnicos, investigando criteriosamente o plano de gestão dos empreendimentos afetados.
Por certo, a eventual contaminação e comprometimento de um ambiente de obra por um clima de trabalho antagônico ao prevalecimento da cultura da segurança e da boa técnica, como ocorre nas frentes de obra que buscam compulsivamente a aceleração de prazos de entrega e/ou a redução de custos, promove temerariamente a possibilidade de ocorrência de falhas ou descuidos.
É interessante investigar também as conseqüências técnicas de um eventual excesso de terceirizações dos mais variados tipos de serviço de engenharia. A partir de um determinado ponto, um excesso de terceirizações não comprometeria a gestão da qualidade global do empreendimento? É muito provável que aí estejam as deixas para entender melhor os acidentes que vêm ocorrendo com alguma freqüência em empreendimentos brasileiros de engenharia e, por dedução, para se evitar novos acidentes.

ÁLVARO RODRIGUES DOS SANTOS é geólogo e ex-diretor de Planejamento e Gestão do IPT

sexta-feira, 28 de março de 2008

Merval Pereira e o espírito da coisa

Merval Pereira, "comentarista político" da oposicionista CBN, aderiu à gritaria desmesurada em torno daquilo que insistem em chamar de "dossiê" sobre os gastos de FHC e patroa. Quem tiver estômago forte, pode ouvir aqui.
Merval fez uma acusação gravíssima: esta é "mais uma prova de que o governo Lula usa de expedientes ilegais para fazer política". Ilegais, Sr. Merval? Mas ilegais por quê? Como o senhor mesmo disse, que diferença faz chamarmos aquilo de "dossiê", "banco de dados" ou "bigode"? Onde está a ilegalidade desse levantamento? Ele foi vendido ou utilizado para extorquir favores ou bens de terceiros? Qual lei ou jurisprudência proíbe a funcionários da Casa Civil imprimir um papel com os gastos de "dona Ruth" (o "dona" fica por sua conta) ou do "presidente Fernando Henrique" (idem)?
Aliás, não, Sr. Merval, a CPI não foi criada apenas para investigar o governo Lula. Fosse assim, nem seria criada. CPI que só existe para fiscalizar um partido é igual a jornalista que só noticia o que quer: inútil, antidemocrática e boba.
Mas o pior, o pior mesmo, veio no fim. Como se alguém perguntasse a ele os motivos de tamanha gritaria por causa de algo tão insignificante, Merval abriu o jogo: trata-se de atingir Dilma Roussef, a pré-candidata preferida de Lula à sua própria sucessão.
"O presidente vai ter de começar a pensar em outra candidatura porque essa, politicamente, vai entrar agora num turbilhão e não vai resistir."
Pegaram o espírito da coisa?

Dossiês que escondem 2

A Veja não merece nenhum de nossos sagrados minutos. Mas passei por lá para entender a questão do dossiê sobre gastos do governo FHC com cartões corporativos. Voltei todo sujo, mas pude verificar que a coisa é mais simples do que parecia à primeira vista. Meu comentário anterior sobre o assunto dava um exemplo da facilidade de se explodir evidências incriminadoras através da fabricação de dossiês. Continua válido, porque assim é. Alguém poderia objetar que existem outras formas de atingir o mesmo objetivo, e é bem verdade, mas a estrutura da dissimulação muda muito pouco.
Parece, entretanto, que a artimanha não foi utilizada por Veja. Sua reportagem descobriu que alguém no Planalto fez um levantamento dos dados sigilosos do governo FHC, para utilizá-los em chantagem contra os parlamentares oposicionistas da CPI dos Cartões. A gritaria horrorizada de Veja acarreta duas indagações: a) os dados devem ser sigilosos? b) a chantagem é necessária?
Por que a sociedade brasileira não pode conhecer a natureza dos gastos do governo FHC, mas, ao mesmo tempo, a imprensa exige as mesmas informações do governo Lula? Sinceramente, eu faria o mesmo levantamento e não teria pruridos em admiti-lo publicamente. Levaria a pasta comigo onde fosse, para mostrar a quem quisesse ver. É divertido ver a oposição cobrando transparência de Lula e usando teorias conspiratórias para esconder FHC.
E por que alguém precisa chantagear membros da CPI para estes investigarem irregularidades das duas administrações? Sem pressões externas, os nobres parlamentares não cumpririam suas funções com lisura e desapego?
A propósito, já que alguém fez esse levantamento, a grande imprensa (inclusive a Folha de São Paulo, que parece tão assustada) poderia divulgar os dados verídicos, como fez com membros do governo Lula. Mas não. Agora vão dizer que, por se tratar de material colhido com o objetivo de fazer chantagem, seria inidôneo utilizá-lo.
Que medo de mexer com FHC, né não?

quinta-feira, 27 de março de 2008

Dossiês que escondem

Há uma intrigante coincidência na recente fabricação de dossiês envolvendo celebridades da política nacional: são divulgados, viram peça de contravenção, membros do governo federal (ou do PT) sofrem repúdio público e o teor desses documentos simplesmente deixa de existir.
Aconteceu no chamado escândalo das Sanguessugas. Sabia-se que a compra irregular de ambulâncias vinha desde 2001, gestão José Serra no ministério da Saúde, governo FHC. O esquema envolvia mais de 60 deputados, alguns senadores, dezenas de prefeitos e, principalmente, Barjas Negri (PSDB), atual prefeito de Piracicaba (SP), que foi secretário de Serra, ministro da Saúde e secretário da Habitação do governo Alckmin em São Paulo.
A 15 dias do primeiro turno das últimas eleições presidenciais, a PF prendeu Gedimar Passos e Valdebran Padilha, que comprariam um conjunto de documentos provando envolvimento de políticos tucanos no esquema criminoso. Ninguém explicou até hoje qual teria sido a base jurídica para efetuar aquelas prisões (não havia crime para justificar o flagrante), mas o fato é que os tais documentos desapareceram, a campanha de Aloísio Mercadante ao governo paulista implodiu e Serra elegeu-se com folga.
Procedimento semelhante pode ser observado nesse imbrólio envolvendo o suposto dossiê, encomendado pela cúpula do governo Lula, sobre o uso dos cartões corporativos pelo casal Fernando Henrique e Ruth Cardoso.
Funciona assim: preciso exterminar os indícios de minhas diatribes inconfessáveis; contrato alguém para levantar tudo, absolutamente tudo que existir no "mercado" sobre tais impropriedades; feito o dossiê (com aparência amadorística e incompleta), chamo um intermediário na imprensa (a Veja existe pra quê, oras bolas?), aviso um amigo na Polícia Federal e temos um escândalo. Sempre que alguém quiser me incriminar com base naquelas evidências, minha defesa será "ah, mas aquilo era um dossiê falso, coisa de araponga", e ninguém vai se meter com produto de ilícito, que, afinal, foi descartado pela própria PF.
Em vez de investigar a verdadeira natureza dessas suspeitas, a grande imprensa ajuda a invalidar todo o conjunto de informações que poderiam comprová-las. Os indícios dos delitos transformam-se em parte da sujeira que deveriam ajudar a esclarecer.
Importante salientar que falo aqui da semelhança de procedimentos, não de responsabilidades ou culpas. Afinal, é impossível separar verdade e mentira, fato e ficção, documento e fraude, quando ninguém, nem a PF ou CPIs de conveniência, se dispõe a investigar.

Em tempo: descobri há pouco um vídeo interessante sobre a antiga máfia das Sanguessugas. Tem um acabamento meio tosco, cheirando a apocrifia eleitoral, mas, aparentemente, não há trucagens, apenas edição e legendas. Consta que essas imagens também estavam naquele dossiê de 2006.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Temporão é a bola da vez

Não é de hoje que o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, atrai a ira dos adversários políticos. As intrigas pessoais vêm de suas muitas funções administrativas anteriores, que remontam aos anos 80.
A disputa com César Maia, por exemplo, começou durante uma passagem rápida e conturbada de Temporão pela subsecretaria municipal de Saúde do Rio de Janeiro, na gestão Sérgio Arouca, quando Maia era prefeito. Muito está para ser esclarecido sobre aqueles dois meses de desentendimento, quando a capital estava às voltas com uma ameaça de epidemia de dengue. Depois, em 2005, enquanto assessor do Ministério, Temporão coordenou a intervenção federal nos hospitais cariocas, novamente chocando-se com o reeleito César Maia.
Na grande imprensa, os ataques contra Temporão têm outra origem. A Saúde foi a pasta ocupada por José Serra (PSDB), que parecia ter realizado uma gestão imaculada e exemplar até o dossiê das Sanguessugas vir à tona (e desaparecer logo em seguida). É a vitrine federal de Serra, que pouco ou nada poderá apresentar de seu governo paulista.
Além de ocupar um posto estratégico para a propaganda demo-tucana de 2010, Temporão é um sanitarista de renome nacional, competência administrativa comprovada e grandes avanços nas instituições que administrou. Tudo leva a crer que sua passagem pelo Ministério da Saúde será bem-sucedida. Torna-se necessário, portanto, arruinar sua reputação.
Eliane Cantanhêde (“Gente!”), colunista da Folha de São Paulo, é caso exemplar da tropa de choque anti-Temporão. Seu alarmismo destrutivo sobre a suposta epidemia de febre amarela já virou um clássico do jornalismo contemporâneo. “Vacine-se!”, bradou ela, genericamente, ignorando que nas regiões urbanas (onde vive seu público) a vacinação é desnecessária e, em alguns casos, perigosa. “Não deixe para amanhã, depois, semana que vem... Vacine-se logo!” Pois não veio a epidemia, pessoas morreram por efeitos colaterais da vacinação, faltou vacina para quem precisava e a comentarista silenciou.
Adivinha. Ela voltou à carga ontem, meses depois, para falar sobre o papel “fundamental” da imprensa na campanha contra a febre amarela e para distribuir responsabilidades pela proliferação da dengue no Rio. Parece que o governo federal (e Temporão, consequentemente) poderia ter evitado uma doença causada por mosquitos que vivem em entulhos, quintais e áreas urbanas abandonadas. Ah, bom.

terça-feira, 25 de março de 2008

Morreu Sérgio de Souza

Depois de alguns desencontros, conheci-o no lançamento do "Crisálida", ano passado, em São Paulo. Foi atencioso, acessível, simpático. Insistiu para que eu promovesse festas de lançamento do livro também em Campinas, sugerindo um bar ou restaurante perto da Unicamp, que já não existia mais. Imerso na minha proverbial timidez, fiz que sim, claro, vamos providenciar e logo que o papo acabou saí para recuperar o fôlego. Ter conversado com ele foi o suficiente para valer o desespero da noite de autógrafos.
Sérgio de Souza foi dos meus maiores incentivadores, da generosa acolhida às páginas da Caros Amigos à edição de meu primeiro romance pela Casa Amarela. Até a apresentação de Ignácio de Loyola Brandão foi, claro, um presente do Sérgio para este humilde escriba.
Perdi, nesses anos todos (escrevo para a Caros Amigos há oito Carnavais), oportunidades incríveis de conhecer melhor o Sérgio e aprender com ele. Agora, no silêncio deste calor insuportável, resta apenas a indelével lição sobre o tempo desperdiçado e uma sensação de expectativa por algo indefinível, que talvez não venha jamais.
Espero que a imprensa brasileira, mesquinha e pobre como só ela, faça mínima justiça à grandeza da biografia do Sérgio de Souza.

segunda-feira, 24 de março de 2008

A ocupação do Iraque, cinco anos depois

Há um equívoco de origem nas discussões sobre se os EUA estão vencendo a “guerra contra o Iraque”: nunca houve guerra, mas ocupação. E essa constatação é mais conseqüente do que pode parecer à primeira vista. Guerras e ocupações têm objetivos e métodos diferentes. As primeiras terminam, por exemplo, e são fundamentalmente empreitadas militares, planejadas para atingirem essa finalidade o mais rapidamente possível. Domínio territorial, quando visado em si, faz sentido apenas se longevo, e possui aspectos econômicos indissociáveis da força armada.
Mas o completo usufruto das potencialidades econômicas, estratégicas e até simbólicas da ocupação não depende apenas da deposição do governo local e da presença de tropas. Um país em ruínas, com população hostil e mão-de-obra extenuada proporciona mais prejuízos que dividendos. A missão formalmente civilizadora dos EUA é incompatível com o expressivo número de baixas dos invasores, o genocídio dos civis iraquianos e o predomínio do terror, da tortura e da clandestinidade.
Acontece que manter um longo estado de beligerância no Iraque também é lucrativo para os grandes conglomerados que assumiram o poder com George W. Bush. A espantosa cifra de três trilhões de dólares (gasto estimado da invasão até agora) dá uma boa medida do tipo de riqueza envolvida. Trata-se de dinheiro público (ou quase) passando às mãos de companhias privadas, em pleno florescimento da maior crise financeira das últimas décadas. Mesmo exagerando a quantia gasta para cobrir indenizações, percebe-se que essa fortuna quase não se abala. Simplificando, para visualizar remotamente a cifra, imaginemos duas mil empresas recebendo um bilhão de dólares cada, em cinco anos.
Eis o aspecto tenebroso da conquista estadunidense: ela não transcorre segundo expectativas claramente definidas. Quanto mais se aproxima de uma vitória estritamente militar (inevitável a longo prazo), mais consolida a derrota do projeto inicial, que vislumbrava um protetorado submisso e estável. E o abandono dos objetivos originais, além de garantir satisfação financeira aos asseclas de Bush, ajuda a criar novos critérios de sucesso para divulgação à opinião pública.
Em resumo, basta imergir a ocupação desastrada no imaginário guerreiro para se inventar um triunfo militar. Em breve os EUA poderão abandonar um Iraque arruinado, sem perspectivas, entregue à miséria e ao desespero, e esse gesto parecerá vitorioso apenas pelo alívio que proporcionará.

domingo, 23 de março de 2008

"O espaço moderno"

Minha última releitura dessa fase de estudos sobre Teoria e História da Arte. O livro da Cosaic & Naify, em correta edição com reproduções coloridas, atualiza e expande uma tese de doutorado defendida pelo autor em 1997, no Departamento de Filosofia da USP. Sintomático, esse viés analítico da imanência da obra artística, das relações significante-significado, do pensar sobre o pensar estético. O repertório filosófico foi incorporado ao debate artístico da chamada pós-modernidade e não há criação contemporânea que não dependa fundamentalmente dele.
Alberto Tassinari consegue locomover-se com desenvoltura nesse terreno cheio de obstáculos e armadilhas, mas particularmente dificultoso pelo ineditismo temático, pela indeterminação anterior desse novo objeto, que talvez ainda esteja demasiado imaturo para ser devidamente analisado. Definir o espaço moderno significa realizar uma profunda exegese da arte contemporânea, pois esta gradativamente se dissociou das tendências precedentes através da fusão forma-discurso, para prejuízo do segundo, e hoje se materializa numa relação dialética entre a substância física da obra e o meio circundante, que inclui o espectador. Não deixa de implicar um “conteúdo” (que, de alguma forma, sempre será metalinguístico), mas nega-se a adotar as vias narrativas consagradas.
Trata-se daquilo que o autor conceitualiza como “espaço em obra”, que se comunica com o mundo exterior, trocando com ele os sentidos ontológicos da natureza artística do objeto (re)criado. Ele se realiza, também, exibindo suas próprias estruturas, como se reproduzisse permanentemente os procedimentos que a engendraram, ou seja, imitando, “por meio dos sinais do fazer, o fazer da obra”.

sábado, 22 de março de 2008

Bob Dylan se veste de mulher para passear de bicicleta no Uruguai

Folha de São Paulo, 22 de março de 2008

O cantor norte-americano Bob Dylan se disfarçou de mulher, anteontem, para passear de bicicleta por Punta del Este, no Uruguai.
Ele encerrou, na noite de anteontem, a sua turnê latino-americana, que passou também por Rio e São Paulo.
Segundo informações do setor de relações públicas do hotel Conrad à agência de notícias France Presse, Bob Dylan "aproveitou o bom clima e a tranqüilidade do balneário e saiu para dar um passeio de bicicleta, disfarçado de mulher para evitar a perseguição de fanáticos e da imprensa."

quinta-feira, 20 de março de 2008

A mudança do Conversa Afiada

A saída do blog Conversa Afiada, de Paulo Henrique Amorim, do iG provocou burburinho exagerado. Seus muitos desafetos parecem fanáticos dançando sobre caixões inimigos, como se uma simples troca de hospedagem significasse um vexame coletivo. E os defensores do jornalista enxergam censura e violências numa atitude previsível, inevitável e corriqueira, embora não seja positiva ou louvável. Até Mino Carta, diretor da Carta Capital, anunciou a retirada de seu blog dos domínios do iG, num exemplo raro de protesto levado às últimas conseqüências.
Nunca fui muito fã do Conversa, embora continue sugerindo-o aqui. Aquela telinha com a cara do PHA falando “Olá, tudo bem?” toda vez que a gente abria a página já me levou a instintivamente fechar tudo, sem ler qualquer postagem. Ele também desenvolveu uma persona um tanto contraditória, misturando Igreja Universal e michaelmoorismo de extrema esquerda. É difícil saber, entre a denúncia da mídia e uma luta incomodamente pessoal contra Daniel Dantas, qual é o real objetivo de PHA.
Sua acepção do PIG (Partido da Imprensa Golpista) parece-me exagerada, embora, para públicos vastos e condescendentes, a simplificação venha a calhar. Tampouco me satisfaço com seus textos, truncados em tópicos. Talvez sua participação televisiva supra essa lacuna (nego-me a assisti-lo na Record), mas no blog sinto falta de mais informações conexas e análises fundamentadas.
Idéias como as de PHA são divulgadas há décadas por outros informadores, sem a mesma repercussão. Claro, ele é famoso. Mas desconfio que amealhe tantos apoiadores por simbolizar um herói reabilitado, espécie de Robin Hood da Verdade, que decidiu escancarar os podres da mídia depois de conhecê-la por dentro. E é exatamente esse personagem que afasta importantes nomes do jornalismo atual, desconfiados de visionários que não rasgam dinheiro e acomodados numa imparcialidade mais proferida que praticada.
Agrada-me particularmente a desavergonhada exposição de parcialidade que PHA utiliza para confrontar a hipocrisia da imprensa hegemônica.
Aparentemente, a rescisão foi empreendida segundo as prerrogativas do contrato com o iG. Seria estéril divagarmos sobre os motivos da decisão. Provavelmente houve pressões de interesses pessoais ou corporativos atingidos pela cruzada anti-Dantas, gente da pesada, alheia a qualquer falatório ideológico. Talvez tenha influído também a possibilidade do iG ser condenado solidariamente numa enventual ação cível contra as acusações de PHA. Ou a proximidade fonética e visual entre o tal PIG e o nome do provedor.
Dizem que Caio Túlio Costa (diretor do iG e antigo ouvidor da Folha de São Paulo) justificou sua decisão por “insuficiência comercial” do blog. Ou seja, os 475 mil acessos únicos recebidos no ano passado seriam insuficientes para honrar o investimento do iG. Isso sim é bobagem, e demonstra que a rescisão não obedeceu a princípios puramente técnicos. Quando alguém precisa inventar mentiras para explicar suas atitudes, tem coelho na tuba. Os ferozes inimigos de PHA argumentam que 475 mil acessos individuais não significam grande coisa. Mentira. Esse índice pode não ter gerado dividendos (e, a propósito, como saber?), mas, nos padrões brasileiros, para um blog pessoal, sobre política, é respeitabilíssimo e igualado por poucos.
A direção do iG não procurou conferir transparência à rescisão: os leitores do blog foram privados de avisos prévios (a página foi simplesmente desativada) e PHA teve de recorrer à Justiça para recuperar os arquivos de suas postagens (leia mais aqui). Mesmo com toda a polêmica que se seguiu à medida, Costa nega-se a prestar maiores esclarecimentos. Não tem essa obrigação, mas seria um gesto de, digamos, boa vontade, em se tratando de um assunto com certa repercussão pública. Aliás, pelo menos os usuários do iG mereciam tal satisfa.
De escândalo irrelevante em escândalo irrelevante, para o bem do debate político nacional, inconformistas como Paulo Henrique Amorim vão conquistando popularidade – menos por atributos próprios que pela inabilidade canhestra de seus adversários.

Anthony Minghella (1954-2008)

Sua morte precoce representa a perda de um importante defensor do classicismo grandiloquente dos anos dourados de Hollywood. Minghella marcou mais como pessoa do que como artista. Sensível, atencioso, muito preocupado com seus atores, deixou um legado positivo no convívio humano das filmagens, que costumam ser ambientes caóticos e frios. Não surpreendentemente, conseguiu trabalhar com os melhores atores, arrancando algumas de suas interpretações mais marcantes.
Nunca me senti plenamente satisfeito por seus filmes, com a possível exceção de "O talentoso Ripley". É seu trabalho mais bem-acabado, mas padece da maldição da refilmagem (tenho para mim que nenhum melhor filme de alguém pode ser uma refilmagem), prejudicado, talvez injustamente, pelas comparações com "O sol por testemunha". "O paciente inglês", apesar de Juliette Binoche, é um porre de absinto. Gostei de "Invasão de privacidade", com roteiro original e um elenco talentoso e inspirado.
Mas toda a curta filmografia de Minghella parece inchada de tragédia épica, com personagens heróicos, música orquestral choraminguenta, movimentos lentos de câmera, cabelos ao vento. É o resgate de um passado glorioso, cheio de pompas e grandes dilemas humanos, que fez algum sentido, se fez, em outros tempos.

quarta-feira, 19 de março de 2008

O Tibete é nosso

Os distúrbios tibetanos trazem uma possibilidade de reflexão sobre a fisionomia moderna do separatismo e seu uso como instrumento de propaganda no contexto dos embates geopolíticos. Ao contrário do que reivindica certo libertarismo de camiseta, é sempre muito difícil julgar os méritos dos movimentos autonomistas.
A lista de regiões que reivindicam soberania é extensa e antiga, revelando uma complexidade incômoda para os maniqueísmos. Há Kosovo na Sérvia, os curdos do Iraque e da Turquia, a Catalunha, a Galícia e o país Basco na Espanha, Quebec no Canadá, a Sardenha e a Padânia na Itália, Taiwan na própria China, a Córsega e a Bretanha na França, Flandres na Bélgica, a Chechênia, a Ossétia do Sul e o Daguestão na Rússia, Santa Cruz na Bolívia, Irlandeses no Reino Unido e um sem-número de etnias e povoados remotos com exigências que remontam à ancestralidade (entre eles os índios Sioux, que recentemente declararam-se independentes dos EUA).
É fácil defender irrestritamente o direito dos povos se autodeterminarem. Em tese, observadas algumas condições (contigüidade territorial e lingüística, identificação religiosa e cultural, ancestralidade comum) e havendo interesse coletivo, qualquer pedaço de país deveria ter o direito de se emancipar. Mas a coisa começa a ficar complicada quando descobrimos que essa propriedade não nos parece tão sensata quando aplicada a nós mesmos.
Espanha, Inglaterra, França e EUA sabem defender as independências kosovar ou tibetana, mas desconsideram semelhante direito para seus cidadãos, que possuem reivindicações talvez mais justas e contundentes. Cabe lembrar, a esse respeito, que o Tibete foi chinês e Kosovo sérvia por séculos, até o século XX, tendo seus estatutos modificados sob interferência de potências estrangeiras, para atender aos rearranjos convenientes a seu tempo.
Desnecessário reforçar, evidentemente, que os autonomistas tibetanos e kosovares não deixam de ter razão por isso. Os argumentos históricos não esgotam a questão, mas servem para relativizar (ou reforçar) ponderações de outras naturezas; e, afinal, a antigüidade representa um importante elemento legitimador das reivindicações. Por outro lado, se a História prevalecesse no debate, a Alemanha, a Holanda e até a França poderiam simplesmente desintegrar-se em centenas de províncias, herdeiras dos Estados surgidos no final da Idade Média e unificados apenas 400 anos depois.
Pensemos agora como reagiríamos se Santa Cruz virasse um enclave em território boliviano e logo fizesse um acordo militar com a China (evitemos o antiamericanismo) e, protegida por sua soberania de nação recém-nascida, fornecesse bases de treinamento e mão-de-obra para a indústria bélica daquele país. Ou imaginemos que a população que vive nas gigantescas áreas possuídas pelo reverendo Moon em vários Estados brasileiros passasse a reivindicar um estatuto autônomo, provando a observância àquelas condições acima esboçadas. Ou ainda, para deixar o desafio mais complicado, que os povos indígenas da região amazônica recebessem apoio das potências mundiais para criarem uma região preservada, sob escrutínio da ONU, utilizando sua posse imemorial daqueles recursos naturais como base para afirmar direito exclusivo sobre eles.
Cientes do tamanho do problema, os governos tendem a se unir num consenso tácito, contrário à fragmentação territorial de qualquer tipo. Soluções administrativas sensatas e pacíficas, principalmente se legitimadas pela manifestação popular, sempre serão possíveis e tendem a dominar os embates futuros. Mas também sobreviverá, infelizmente, a utilização política, hipócrita e conveniente, dos padecimentos alheios, para satisfazer interesses momentâneos, inconfessáveis, que nada têm a ver com os direitos e benefícios dos povos.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Barrados no Paraíso

A repentina onda de detenções de brasileiros no aeroporto de Barajas, em Madri, provavelmente esteve relacionada às eleições espanholas. Passados os debates da campanha, tudo tende a voltar ao “normal”. As autoridades brasileiras fizeram o que podiam, isto é, aplicaram o princípio fundamental da reciprocidade, que rege toda diplomacia. A imprensa local, subserviente como só ela, debaixo de seu complexo de cucaracha, achou um absurdo devolver espanhóis e chamou a medida de “retaliação”.
Pois usem retaliação, se quiserem. Foi pouco e bom. Pouco porque não tratamos espanhóis, ou gringos quaisquer, com a mesma brutalidade cínica e preconceituosa que eles nos reservam em seus países. Se apenas um europeu ficasse detido numa salinha de Cumbica por três dias, sem acesso a pertences, incomunicável, comendo gororoba, seria um escândalo internacional. Nossas elites cosmopolitas fariam passeatas pelos direitos humanos dos pobres painhos. E, definitivamente, algo melhoraria no tratamento recebido por brasileiros honestos em dependências estrangeiras.
E foi bom porque, em primeiro lugar, os abusos espanhóis arrefeceram. Mas também porque, nesse jogo sem inocentes, é fácil uma das partes virar capacho da outra, submetendo-se a qualquer absurdo em silêncio. Prova dessa passividade foi observada na própria imprensa, que tratou imediatamente de justificar as detenções deles (busca por trabalho ilegal, prostituição, baderna no aeroporto, falta de dinheiro), sem utilizar os mesmos critérios a nosso favor. Como se não houvesse espanhóis, ou europeus, ou estrangeiros em geral, envolvidos com prostituição infantil, tráfico de drogas, biopirataria e até mesmo crimes comuns, em território brasileiro.
A questão do controle de fronteiras é ardilosa. As listas de requisitos são basicamente as mesmas para entrada em todos os países com relações diplomáticas. Ninguém as aplica no cotidiano, porque são tolas e desnecessárias. Segundo uma dessas regrinhas, o turista que vai passar vinte dias na Europa precisa levar 1400 euros nos bolsos, correndo o risco de ser roubado (sim, lá também existem ladrões) e perder mais de R$ 3 mil na brincadeira. Que diferença faz para a Noruega se eu estou andando com tal fortuna enfiada nas meias, na cueca, no sovaco, ou se a possuo na segurança dos caixas eletrônicos?
Outra regrinha prevê que o cidadão já chegue com todos os hotéis pagos; se descobrir que caiu num dos muitos golpes da internet e pagou por uma espelunca infecta, danou-se, porque assim o quiseram os legisladores islandeses. Mas que diferença faz para a Islândia se eu carrego um comprovante de reserva numa pocilga qualquer, que pode até mesmo ser fictícia? Ter pagado trinta moedas para um albergue me impediria de trabalhar em qualquer país?
Mas o importante a ter em vista (inclusive quando se viaja) é a irrelevância dos critérios: as autoridades aduaneiras têm, por tratados internacionais, a prerrogativa de negar entrada a qualquer pessoa, por motivos tão subjetivos quanto secretos. Nem explicar precisam. O problema não é que esse princípio seja aplicado a cientistas brasileiros, mas que nós não possamos fazer o mesmo com eles, até explicitamente para exigir respeito, sob o risco de parecermos grosseirões.
Quem cruza fronteiras com freqüência já descobriu que o controle é aleatório, visual, contraditório, e principalmente inútil. Dada a impossibilidade prática de revistar e interrogar rigorosamente cada um dos milhares de passageiros que desembarcam nos grandes aeroportos, os funcionários limitam-se a selecioná-los por seu arbítrio (e seus preconceitos). Etnia, gênero, vestimentas e talvez nacionalidades se transformam em critérios de averiguação.
Desnecessário explicar quão enganadoras tais aparências podem ser. Sempre passei incólume em todas as alfândegas que cruzei – certa vez, por puro esquecimento, entrei num avião, na Suíça, com um canivete na bagagem de mão. Ninguém nem tchum. Ao meu lado, famílias de viajantes com feições andinas tomavam gerais dignas da PM em dia de jogo.
No momento em que se abre exceções, todo o sistema de controle desmorona. É impossível ser eficaz por amostragem, pois, nesse caso, um único engano pode causar uma tragédia de proporções desastrosas. No fundo, as autoridades aduaneiras nada podem fazer de efetivo e se contentam em encenar esse teatrinho da super-rigidez primeiro-mundista que confere uma aura de controle à coisa toda, sem que exista qualquer controle de fato.
Claro, eles também sabem que a ilusão da superioridade depende muito da coreografia utilizada. Para que a arrogância européia faça algum sentido, é necessário envolver todos os viajantes no espetáculo das desigualdades mundiais, onde abusa quem pode e obedece quem quiser conhecer o Prado.
É por essas e outras que nos parece tão inimaginável um presidente venezuelano mandar o rei Juan Carlos calar a maldita matraca.

sábado, 15 de março de 2008

O martírio de Serra

Em local destacado da Folha de São Paulo (caderno Brasil, alto de página ímpar), surge a seguinte manchete: "Serra cede a pressão do PSDB e aumenta viagens pelo Brasil". A repórter Catia Seabra diz que o governador paulista continuará viajando pelo país porque "se rendeu ao argumento" de seus partidários. O melhor vem em seguida: "Segundo tucanos, Serra acompanha, apreensivo, a constante movimentação de Aécio. Até fevereiro, ele resistia aos apelos do aliados para que viajasse mais".
Ah, entendi. Serra não está viajando pelo país, com dinheiro do erário paulista, para realizar acordos eleitorais visando 2010. Ele está sendo forçado a isso por correligionários. É um sacrifício em nome da coesão partidária. O mesmo tipo de autoflagelo que ele fez quando foi obrigado a abandonar a prefeitura de São Paulo nas mãos de um malufista, para candidatar-se a governador.
Quem serviu de fonte para a repórter? Tucanos. Quando? Onde? Não importa. Para o jornalismo ornitólogo, é suficiente espalhar as boas intenções de nosso governador abnegado, exceção honrosa em meio a tantos sacripantas que só pensam em seus benefícios eleitorais. Serra não, coitado, ele faz a contragosto.
Depois, quando o cidadão diz para a esposa que só tomou a saideira porque os amigos o pressionaram, ela não acredita. Mundo injusto.

sexta-feira, 14 de março de 2008

A Chauás acabou?

Parece que realmente Lucas Gerônimo da Silva não vai mais organizar a Expedição Chauás. Aquelas corridas de aventura tinham como principal característica a dificuldade física, num nível que não se encontra em provas de extensão intermediária (entre 100 e 150 km). É o famoso “perrengue”, marca registrada da Chauás: ausência de trilhas, terrenos hostis, subidas intermináveis e uma fantasmagórica capacidade de atrair chuvas torrenciais. Participei de quatro Expedições com a equipe Curupira Pirô!. Na primeira, em Itanhaém (março de 2006), subimos toda a Serra do Mar, pela encosta, até o marco da cidade de São Paulo – para voltarmos em seguida. Suportamos umas vinte horas de temporal ininterrupto, que causou grandes estragos nas cidades litorâneas e anulou qualquer possível trilha no mato. Galgamos os morros por quase um dia (foram trinta e tantas horas de prova), com torrentes de água entrando em cada orifício, sem referências, à beira da hipotermia.
Na prova seguinte, na Ilha do Cardoso, passei horrivelmente mal, desidratando, com pressão baixa, e tive de ser rebocado pelos companheiros até uma ambulância. Havíamos percorrido boa parte da prova e eu pus tudo a perder por um deslize na alimentação.
Na última prova de 2006, em Guaratinguetá, subimos dali a Campos do Jordão, numa inacreditável trilha escarpada, sob chuva (claro), em plena madrugada. Frio de verdade. Depois descemos de volta, pegando o mais longo e enlameado esqui-bunda da história. Foi nossa prova mais bem-sucedida.
Também terminamos bem a de Águas de Lindóia (março de 2007), apesar de ter sido um pouco diferenciada em relação aos padrões Chauás, com predomínio de estradas e caminhos largos.
Depois do sufoco em Itanhaém, enveredamos numa proveitosa polêmica com Lucas e alguns atletas. Defendíamos a necessidade do Chauás se “profissionalizar”, adotando certas medidas de segurança e suporte existentes em provas menores e menos perigosas. Em Itanhaém, por exemplo, havia apenas um PC (Posto de Controle) na base da Serra e outro no alto; nenhum intermediário. A equipe poderia errar o caminho e terminar no Camboja, como quase aconteceu, e encontrá-la seria impossível. A Chauás não permitia a presença de equipe de apoio (o abastecimento dos atletas ocorria junto às suas caixas de mantimentos, transportadas pela Organização) e nem fornecia comunicação imediata com os resgates (rádios, rojões, sinalizadores). Era melhor assim. Nós defendíamos compensar a compreensível falta de suporte com um número maior de PCs e resgates, e uma estrutura melhor de apoio a familiares e amigos de atletas, autoridades, bombeiros imprensa, etc.
Previsivelmente, a comunidade dos competidores reagiu mal às nossas sugestões. Tiveram medo de descaracterizar a Chauás, tornando-a semelhante às outras. Lucas, entretanto, foi prudente e soube adotar algumas inovações para as provas seguintes.
Apesar das restrições ao “jeito (ma)Lucas de organização”, lamento o fim da Expedição. Seu visível apreço pelo esporte conseguia atingir todos os envolvidos, criando uma mística e um espírito de exclusividade que não se vê nas provas concorrentes, marcadas pela competitividade insensível e mais próximas do triatlo do que da aventura.
Além disso, a Chauás sempre significou a descoberta de topografias inesquecíveis, revelando imensas riquezas naturais. O mangue da Ilha do Cardoso (que atravessamos afundados até as cinturas), a exuberância de Lagamar, os cenários deslumbrantes do vale do Paraíba e as bromélias assassinas da Serra do Mar são algumas das experiências inesquecíveis que tivemos graças a essa prova cheia de dificuldades e privações.
Alguém pode até imitar a Chauás, em iniciativas futuras. Se não houver uma largada com a buzina do Lucas e se não chover sem parar, do começo ao fim, não será igual.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Georges Mathieu


Francês, nascido em 1921. Gênio multifacetado, estudou Direito, Filosofia e Língua Inglesa. Tornou-se um importante teórico das Artes, pioneiro dos happenings e personagem polêmico, meio dandi, meio maldito, no circuito europeu.

Foi contemporâneo do Expressionismo Abstrato de Pollock e de Kooning, com os quais dialoga constantemente, apesar de possuir uma caligrafia constante, identificável e, talvez, cromaticamente mais rica. Pertenceu à vertente francesa do movimento, intitulada Tachismo, Abstracionismo Lírico ou Arte Informal.
Há um filme sobre Mathieu, dirigido em 1971 por Frédéric Rossif, com música do grego Vangelis (de “Blade Runner”, “Carruagens de Fogo” e outros), cujo trecho pode ser visto aqui.

Bob Dylan no Rio

Nada mais apropriado para assistir a um show de Bob Dylan do que estar molambento, sujo e alquebrado, depois de sete horas de ônibus, alguns chopes na escaldante adega Pérola, um passeio pela areia de Copacabana e a interminável travessia até o Rio Arena.
Construído para sediar competições dos jogos Panamericanos, esse belo ginásio lembra os dos jogos da NBA, liga de basquete dos EUA. Há apenas cadeiras nos dois anéis das arquibancadas, mais as dispostas na quadra, diante do palco. Não chegou a lotar, mas a quadra, mais cara, sim. Somando os dois anéis superiores, restaram cerca de 20% vazios. A platéia era divertidamente eclética, indo de adolescentes imberbes (que não aparentavam saber muito sobre Dylan) até casais de frágeis septuagenários, passando pelos indefectíveis burgueses cariocas e sua proverbial grosseria.
O espetáculo começa com apenas sete minutos de atraso. Dylan já está no palco, em meio aos cinco membros da banda. O som é explosivo, altíssimo; primeiro agride, sujo e estourado, mas depois, como a grotesca voz do ídolo, torna-se gradativamente harmonioso. E, de repente, nos descobrimos ouvindo o mais vigoroso e competente roquenrol.
Não há acasos no repertório que abre o show. Começa com a pouco tocada “Rainy day woman # 25 & 35”, fazendo o ginásio ecoar em uníssono o refrão “everybody must get stoned” (“todo mundo precisa ficar doidão”; lamento, mas é isso que diz). “It ain’t me, babe” parece avisar a platéia de que ali não encontrará o menestrel de violão e gaita, acústico, arrastando as melodias conhecidíssimas dos hinos de protesto. “Não sou eu quem você está procurando”. Depois do contraponto de “I’ll be your baby tonight”, Dylan assume o teclado até o fim, resgatando a clássica “Masters of war”, tristemente propícia ao momento.
E assim começa o melhor da apresentação, baseada em arranjos originais e inspirados e no virtuosismo dos músicos. Compreendo os jornalistas que maldisseram essa completa transformação do repertório, a ponto de torná-lo irreconhecível para quem não domina as letras. Mas os críticos certamente são jovens demais para lembrar a apresentação de 1990, em São Paulo (dezoito anos atrás, senhores!), durante a chamada “Turnê Sem Fim”.
Numa fase particularmente atribulada de sua vida, Dylan tocou vestido de couro preto das botas ao chapéu, com uma garrafa de uísque ao lado (que esvaziou em goladas num copo de plástico), parecendo insatisfeito, pálido, talvez doente. Naquela ocasião, é verdade, todas as músicas soaram estranhamente semelhantes, como numa sucessão de trechos da mesma melodia, nos quais só mudassem os textos.
(Cabe aqui uma observação: revi há pouco um vídeo do show de 90 na praça da Apoteose, no Rio. Dylan parecia mais satisfeito. E “Like a rolling stone” não soou tão barulhenta. Talvez fosse o caso de revisitar aquele longínquo Hollywood Rock II.)
Agora, a fase “Modern Times” exibe um Dylan renovado, oficialmente sóbrio, que consegue até sorrir e mexer o quadril, num arremedo de travessura. Seus clássicos receberam arranjos de verdade, harmonicamente ricos, inspirados no blues e no rockabilly. Na maioria dos casos, o resultado é surpreendentemente agradável: “Masters of war”, “Highway 61 revisited”, “Blowin’ in the wind” e “Like a rolling stone” foram modernizadas com respeito e lirismo, ficando quase antológicas, ao lado de suas versões antigas e consagradas (há algumas gravações de celular, principalmente do show em São Paulo, no Youtube. Infelizmente, a qualidade é sofrível).
O líder da banda, o guitarrista Denny Freeman, faz toda a diferença. Veteraníssimo, com enorme experiência em botequins e casas noturnas, tocou com Jimmy e Steve Ray Vaughan, Albert Collins, Budy Guy, John Lee Hooker (que fazia shows com Dylan nos anos 60), Taj Mahal e uma constelação de astros menores da noite blueseira dos EUA. Sua presença no palco garante uma potência sonora e uma autoridade virtuosística que faltavam às formações anteriores.
Chega a ser comovente como Bob Dylan, já um velhinho carcomido por abusos de todo tipo, com um ronco catarrento no lugar da voz, continua em permanente metamorfose, jamais aceitando submeter-se aos desígnios fáceis do mercado. Desde 1964, quando foi estrondosamente vaiado no festival de Newport, por levar a eletricidade roqueira para o universo folk, Dylan trilha seus caminhos sem intervenções exteriores de qualquer tipo. Ele, que odeia ensaios e repetições, fez há muito uma opção pela atualização implacável de sua própria obra, mesmo às custas de torná-la irreconhecível. A idéia implícita em “Modern times”, como o nome antecipa, não poderia levar a outro resultado.
Nem sempre deu certo. Mas o tocante em Dylan é a escancarada falibilidade desse senhor baixinho e pachorrento, que sobe ao palco, toca o que quer, agradece e some, deixando seu público extasiado, fiel e agradecido, sem saber exatamente por quê.

quarta-feira, 12 de março de 2008

A empresa de Clinton e Reichstul

No início do mês, fiscais do Ministério do Trabalho encontraram 1500 trabalhadores em condições precárias ou degradantes nas instalações da Brenco, uma empresa produtora de álcool combustível. O nome vem de Brazil Renewable Energy Co, traduzido aqui para Companhia Brasileira de Energia Renovável. Ela possui terras em Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e está prestes a realizar sua primeira colheita.
São investidores da empresa o ex-presidente dos EUA, Bill Clinton (através da Yucaipa Global Holdings, que gerencia os interesses do bilionário Ron Burkle, antigo financiador das campanhas do casal Clinton), Steve Case (um dos fundadores da AOL), o indiano Vinod Khosla (fundador da Sun Microsystems), James Wolfensohn (ex-presidente do Banco Mundial) e David Zylbersztajn (ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo).
Alguns dos principais cargos administrativos da Brenco são ocupados por altos executivos da área energética do governo FHC. Além de Zylbersztajn, o ex-presidente da Petrobrás, Henri Phillipe Reichstul, é diretor-presidente executivo da empresa; e Hildo Henz, diretor de empreendimentos, dirigiu a refinaria estatal Alberto Pasqualini (Refap), de Canoas (RS).
A Yucaipa recebeu atenção da imprensa estadunidense na campanha presidencial deste ano. Matéria do New York Times demonstrou que a senadora Hillary Clinton ajudou a aprovar legislação que provê investimentos federais bilionários para a cultura do etanol, favorecendo diretamente os negócios de seu marido e de alguns financiadores das campanhas democratas. Outra fonte de incômodo para a Yucaipa e seus parceiros foi sua associação a interesses não comprometidos com a liberdade e a transparência, como o governo dos Emirados Árabes Unidos e um conglomerado chinês de comunicação.
A grande imprensa brasileira aborda esses assuntos com cautela excessiva, como se fosse pecado investigar certas figuras influentes, que podem voltar aos primeiros escalões estatais a qualquer momento. As atividades da Brenco em território nacional prosseguem, sob a complacência da opinião pública, enquanto grupos transnacionais dominam silenciosamente uma área estratégica para o país.
Debaixo da aura benemérita e progressista da indústria das fontes renováveis de energia escondem-se práticas ilegais e violações a direitos dos trabalhadores, em defesa de interesses
inconfessáveis e muito, muito poderosos.

terça-feira, 11 de março de 2008

"Senhores do crime"

O título original, algo como “promessas orientais”, alude ao drama dos imigrantes envolvidos com o crime organizado. Vivem em Londres e são russos, mas pouco mudaria se vivessem em qualquer capital do mundo e fossem japoneses, ou cubanos. O imbecil título em português, como sempre, reduz o foco para o gosto das platéias ávidas por sangue.
O filme, dos melhores de David Cronenberg, possui algumas de suas marcas: a temática do herói trágico, preso a um destino inexorável, certo apreço pela escatologia, apuro visual, grande direção de atores e, lamentavelmente, um texto pouco engenhoso, que desperdiça algumas oportunidades narrativas.
A obra de Cronenberg possui uma nítida distinção entre os filmes sobre metamorfoses, monstruosidades e aberrações, de estética surrealista, e os dramas soturnos, hiper-realistas, que esmiuçam o estranhamento do absurdo cotidiano. “Senhores do crime” pertence à segunda tipologia.
É uma análise sobre a criminalidade, extensão européia de “Marcas da violência” (2005), seu trabalho anterior. Mas o impagável dialeto utilizado pelos atores (mistura de inglês britânico e vários idiomas da antiga União Soviética) também reflete sobre a incomunicabilidade, questionando o cosmopolitismo dos grandes centros europeus.
“Senhores”, como o filme predecessor, atiça os preconceitos das platéias. Os vilões mais repugnantes possuem uma humanidade e uma capacidade de sedução incômoda, que nos faz cúmplices. E, por todos os lados, as aparências revelam-se meras fantasias, que tomam feições variadas, de acordo com nossa conveniência. Mal e Bem se interpenetram, se equivalem e anulam.
A violência é quase literalmente pornográfica, chocante, mas as interpretações são contidas e a fotografia, belíssima, granulada, em cores suaves, imerge tudo num aconchego incompatível com os horrores sugeridos. Viggo Mortensen e Armin Mueller-Stahl estão fabulosos. A já famosa seqüência de luta na sauna é de fato antológica.
Há muito a especular sobre a importância do organismo na obra de Cronenberg. Aqui, sua presença é ostensiva. Dependendo do enfoque, “Senhores” também pode se tornar um filme sobre o corpo humano, sua pujança, sua beleza, sua transformação (nas metáforas das tatuagens e das violentas mutilações) e sua decadência inexorável.

segunda-feira, 10 de março de 2008

A ditadura insepulta

(publicado na revista Caros Amigos, em março de 2008)


É imprescindível que o Judiciário seja constrangido a assumir posição definitiva sobre os crimes praticados por agentes dos governos militares (1964-1985). Nada justifica a manutenção da impunidade de assassinos e torturadores ainda vivos, tampouco a ocultação de documentos que permitam incriminá-los ou esclarecer aspectos obscuros de suas ações.
A própria Lei de Anistia, destinada a “crimes políticos ou com eles conexos”, está longe de prever uma absolvição generalizada. E, mesmo que suas intenções sejam dedutíveis, trata-se de medida francamente inconstitucional, imposta por um governo ilegítimo. Instrumentos de auto-isenção criados por déspotas caducam junto com seus regimes autoritários. Crimes contra a humanidade, ao contrário, não prescrevem.
As propostas de estender punições para militantes da luta armada são ridículas. Castigos grotescos e ilegais já foram aplicados sobre quase todos os insurgentes. E não há equivalência possível. Mesmo relevando abusos praticados em combate, restam milhares de inocentes (inclusive idosos, gestantes e crianças) trucidados, humilhados e assassinados por servidores públicos em dependências do Estado.
A falácia da “conciliação pacificadora” tranqüiliza consciências envergonhadas. A cúpula da Igreja Católica, a imprensa hegemônica, grandes empresas e certos caciques políticos preferem esquecer seu apoio ao golpe e às violências resultantes. Os governos escondem seu receio de contrariar interesses tão robustos fantasiando reações militares e seguranças nacionais. Acreditam que indenizações compram o esquecimento.
Vítimas e familiares têm direito de ver seus algozes identificados e punidos. O processo judicial é a única maneira de vencer a omissão e a hipocrisia, expurgando para sempre o fantasma do autoritarismo.

A ditadura insepulta

(publicado na revista Caros Amigos, em março de 2008)

É imprescindível que o Judiciário seja constrangido a assumir posição definitiva sobre os crimes praticados por agentes dos governos militares (1964-1985). Nada justifica a manutenção da impunidade de assassinos e torturadores ainda vivos, tampouco a ocultação de documentos que permitam incriminá-los ou esclarecer aspectos obscuros de suas ações.
A própria Lei de Anistia, destinada a “crimes políticos ou com eles conexos”, está longe de prever uma absolvição generalizada. E, mesmo que suas intenções sejam dedutíveis, trata-se de medida francamente inconstitucional, imposta por um governo ilegítimo. Instrumentos de auto-isenção criados por déspotas caducam junto com seus regimes autoritários. Crimes contra a humanidade, ao contrário, não prescrevem.
As propostas de estender punições para militantes da luta armada são ridículas. Castigos grotescos e ilegais já foram aplicados sobre quase todos os insurgentes. E não há equivalência possível. Mesmo relevando abusos praticados em combate, restam milhares de inocentes (inclusive idosos, gestantes e crianças) trucidados, humilhados e assassinados por servidores públicos em dependências do Estado.
A falácia da “conciliação pacificadora” tranqüiliza consciências envergonhadas. A cúpula da Igreja Católica, a imprensa hegemônica, grandes empresas e certos caciques políticos preferem esquecer seu apoio ao golpe e às violências resultantes. Os governos escondem seu receio de contrariar interesses tão robustos fantasiando reações militares e seguranças nacionais. Acreditam que indenizações compram o esquecimento.
Vítimas e familiares têm direito de ver seus algozes identificados e punidos. O processo judicial é a única maneira de vencer a omissão e a hipocrisia, expurgando para sempre o fantasma do autoritarismo.

Laerte

Estados delinqüentes

São numerosas as análises da crise entre Colômbia, Equador e Venezuela que relativizam a culpa da administração Álvaro Uribe. Parece que salientar o caráter “terrorista” das Farc confere certa legitimidade “institucional” a qualquer atitude unilateral do governo colombiano. É, generalizando, a posição da direita brasileira. Lideranças partidárias, como José Sarney, manifestaram-se assim; comentaristas como Clóvis Rossi (“hidrófobos do lulopetismo”) também.
Insisto no problema humanitário que envolve os reféns da guerrilha. Esse Fla-Flu ideológico, tão característico da grande imprensa nacional, tenta pressionar a esquerda a condenar as Farc e solidarizar-se com seus inimigos. Mas o drama dos reféns não é político, nem policial, menos ainda estratégico. Trata-se de centenas de vidas que poderiam ser salvas, não fosse a intransigência de Uribe. Um meneio de flexibilidade faria toda a diferença.
Sim, hoje a intransigência é de Uribe. Se a guerrilha tivesse o mesmo radicalismo, estaria assassinando um refém por semana, ou cometendo atrocidades piores. Ao contrário, o único gesto de distensão partiu dela.
Qualificar as Farc como “terroristas” não muda nada. Essa nomenclatura passou a ser utilizada pós-11/9 para justificar qualquer violência que pareça conveniente aos interesses dos piores governos. O estatuto de infalibilidade conferido ao Estado é uma arapuca e um logro. Arapuca, porque seus defensores podem ser flagrados fazendo a apologia do autoritarismo de Bush ou Putin, apenas porque são governantes eleitos. E logro, porque governos também podem ser terroristas e porque há causas não-reconhecidas, ou criminalizadas, que independem da retórica governamental para serem justas.
Não sei se as ações das Farcs se enquadram nesse caso. Mas, antes de vilanizá-las, seria necessário estudar as origens desse longo confronto, que remonta a disputas políticas de meados do século passado. E obrigaria a resgatar os inomináveis massacres de membros do partido político União Patriótica, que começaram nos anos 80 e permanecem insolúveis (para conhecer essa arrepiante história, clique aqui). Também seria o caso de levantar as suspeitas de participação, passiva ou ativa, de membros do atual governo Uribe nesses assassinatos e em outras ações criminosas das brigadas paramilitares.
No último dia 6 de março, uma enorme manifestação pública tomou as ruas de Bogotá. Foi organizada pelo Movimento Nacional das Vítimas dos Crimes de Estado e exigiu investigações sobre a suposta ligação entre o governo colombiano e os paras, além do esclarecimento sobre as mortes de políticos da UP. A imprensa brasileira ignorou o ato, maior que a manifestação pró-Uribe de dias antes – esta sim, muito noticiada.
Uma abordagem humanitária ao impasse dos reféns é saída honrosa para aqueles que não querem se imiscuir na polarização ideológica, nem palpitar sobre hipóteses. Sem fornecer respostas satisfatórias às suspeitas de banditismo levantadas acima, o governo colombiano é suspeito da mesma delinqüência de seus combatentes.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Boicotem a Via Funchal

É característico das casas de espetáculos paulistanas o absoluto desrespeito ao cliente. Sempre foi assim, desde os tempos do antigo Palace. Não conheço a maioria dos locais mais modernos e os reformados, mas uma passada recente pela Via Funchal, na maravilhosa despedida de B. B. King, foi suficiente para pegar o jeito da coisa.
É tudo muito caro. O custo dos ingressos, um assomo. Paga-se também uma taxa esfoladora no estacionamento, ou pouco mais barata aos “guardadores” das ruas. Os produtos do bar têm preços de bordel (ou de cassino, se preferirem).
Mas o pior, muito pior, é o que se recebe em troca dessas pequenas fortunas. Supondo que o cidadão economize muito e invente a necessidade discutível de pagar horrores por duas horas diante de seu ídolo, a frustração é quase sempre inevitável.
Numa rápida e superficial análise do salão, já se percebe a impossibilidade prática, física, de meter ali o número de espectadores previstos na lotação oficial. As pessoas são literalmente esmigalhadas umas às outras, às cadeiras, às mesas, às colunas. É vetado mexer os polegares, quiçá cruzar as pernas, levantar para emergências fisiológicas, acenar para alguém. Não é apenas insalubre, mas também, ou principalmente, perigoso em caso de pânico ou incidentes.
O serviço é péssimo. Garçons e garçonetes inevitavelmente esbarram nos espectadores, e muitos têm a pachorra de trazer a conta, em pleno espetáculo, enfiando suas vozes, seus corpos e às vezes suas lanternas no sossego dos incautos. Os produtos, vendidos a peso de ouro, resumem-se a maus exemplos das suas respectivas categorias: a cerveja é daquela marca odiada, os refrigerantes idem, a água pior ainda. Tudo é quente como lava. E os salgados de saquinho dispensam apresentações.
Filas são obrigatórias, nos banheiros, na saída, no bar, no estacionamento, na rua. A grosseria dos funcionários, com possível exceção para as recepcionistas, tornou-se folclórica. Há ocorrências esporádicas de furtos e danos a veículos, mesmo no interior dos estacionamentos, tratados por todos como contingências inescapáveis.
Talvez minha revolta suscite generalizações, mas a Via Funchal enquadra-se na maioria delas. Nada explica a passividade do público diante desses acintes. E compreende-se menos ainda por que alguns dos mais importantes espetáculos continuam a ser agendados nesses estabelecimentos.
O imperdível show de Bob Dylan rompeu todos os limites do bom senso. Um ingresso em local mediano vale R$ 400,00 (comprando fora de São Paulo paga-se ainda uma taxa de R$ 100,00). Para sufocar naquele moedor de gente.
Muita razão têm os fãs que simplesmente ignoraram a Via Funchal e vão assistir às apresentações de Dylan no Rio de Janeiro (contando as passagens e o táxi, fica mais barato que o simples ingresso na Via Funchal) ou mesmo em Buenos Aires.
E o Procon? Ora, o Procon...

quarta-feira, 5 de março de 2008

Cadeias podres

O aspecto mais tenebroso do caso da menina estuprada na carceragem paraense é que uma tragédia dessa gravidade esgote-se no âmbito da intriga político-partidária. A súbita e passageira perplexidade dos comentaristas não avançou além da retórica falsamente humanitária que costuma abordar episódios semelhantes.
Colunistas como Míriam Leitão e Eliane Cantanhêde (“Gente!”) salientaram a concentração de mulheres entre as autoridades ligadas ao escândalo. Mesmo que essa curiosa fabricação de contingências reforçasse um preconceito de gênero, que as autoras certamente condenariam (num ambiente masculino o fato seria compreensível?), sua dramatização atendeu a objetivos tão perniciosos quanto dissimulados. A condenação simbólica, “feminista”, de Ana Júlia Carepa escamoteou uma vingança ideológica contra a governadora filiada ao PT, protagonista de surpreendente vitória eleitoral e incômodo sucesso administrativo – apesar do absurdo carcerário.
Passada a fase dos desabafos inúteis, ataques pessoais e generalizações sobre a barbárie nacional, o assunto foi devidamente esquecido. Se algum desses samaritanos da grande imprensa tivesse a menor preocupação com a população carcerária, os jornais de todo o país seriam tomados por milhares de denúncias igualmente arrasadoras, diariamente. O sistema prisional brasileiro é uma insultante engrenagem de violação de direitos humanos, violências cotidianas e cinismo administrativo.
Outra conveniência de se abordar o Pará como antro da incivilidade nacional é desviar o foco da atenção dos descalabros ocorridos nos Estados mais ricos do país. Não por acaso, a maioria dos comentaristas que agigantou aquela onda de indignação é paulista ou fluminense. Os jovens seviciados por agentes públicos na infame Febem e os campos de concentração com seres humanos empilhados, seminus e doentes, simplesmente deixaram de existir no nosso belo e próspero rincão.
Em tempo: por incrível que pareça, existe uma “CPI do sistema carcerário” em andamento no Congresso Nacional. Sério. Ela é presidida pelo deputado Neucimar Fraga (PR-ES) e relatada pelo deputado Domingos Dutra (PT-MA). Seus endereços eletrônicos são dep.domingosdutra@camara.gov.br e dep.neucimarfraga.camara.gov.br. Talvez possamos incentivá-los a dar uma passadinha na penitenciária de Araraquara, na Febem de Franco da Rocha ou no Cadeião de Pinheiros. Só para tomar um cafezinho, trocar umas idéias, coisa e tal...

Nassif no Nassif

Luís Nassif postou o artigo "A Abril nos tribunais" em seu blog. Entre ontem e hoje houve mais de oitenta comentários. Dez também já opinaram no Observatório, apesar do esconderijo em que meteram o texto. Uma repercussão acima do normal, e sempre muito bem-vinda.

Uribe matou a negociação

Segundo fontes confiáveis, o governo francês negociava, em segredo, com mediação e respaldo da Venezuela e do Equador, a libertação de Ingrid Bettancourt. Como se sabe, a refém, de origem francesa, ex-candidata à Presidência da Colômbia, atravessa problemas gravíssimos de saúde. Se não receber atendimento médico urgente, sua morte é inevitável.
O acampamento onde foram assassinados Raúl Reyes e outros guerrilheiros seria uma base avançada para desenvolver as negociações, talvez mesmo libertar a refém. O contato com misteriosos “especialistas” dos EUA, sem missão específica, indica que Álvaro Uribe sabia há semanas das movimentações da guerrilha na selva equatoriana.
Ele decidiu agir agora porque a soltura de Bettancourt era iminente. Agiu para impedir que uma refém fosse salva sem o seu beneplácito, para submeter as negociações ao escrutínio do governo e à estratégia de confronto e aniquilação imposta e financiada pelos EUA.
As administrações Bush e Uribe desprezam a tragédia humana envolvida no conflito com as Farcs. Querem apenas continuar essa guerra inútil e estúpida, que ninguém pode vencer, nem mesmo seus poderosos militares.

Cadê a turma do apagão?

O Hospital das Clínicas de São Paulo, autarquia ligada ao governo do Estado, sofreu dois incêndios entre dezembro e janeiro. Enquanto o governador José Serra (PSDB) falava em sabotagem, descobriu-se que o HC não possuía o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros, documento que atesta o enquadramento do hospital a normas de segurança básicas para seu funcionamento. Além disso, peritos apontaram falhas nas instalações dos equipamentos eletrônicos das salas incendiadas.
Em fevereiro, a Gerência de Risco do HC constatou condições inadequadas de biossegurança para a realização dos exames laboratoriais e interditou a seção de microbiologia. Cerca de 700 exames foram suspensos e centenas de pacientes foram obrigados a perambular em busca de locais propícios para seus diagnósticos.
Nesta segunda-feira, durante um corte rotineiro no fornecimento de energia elétrica, os geradores do Pronto Socorro do HC falharam, deixando os pacientes do atendimento emergencial no escuro. Parte dos equipamentos permaneceu desligada durante as quase quatro horas do corte.
Agora pergunta-se: onde estão os grandes veículos da imprensa paulistana, tão dispostos a levantar dossiês e fazer denúncias avassaladoras? Nenhum dos seus comentaristas tem previsões apocalípticas ou desabafos horrorizados para fazer nesta crise inédita que atravessa o maior hospital da América Latina?

terça-feira, 4 de março de 2008

A Abril nos tribunais

(publicado no Observatório da Imprensa, em 4 de março de 2008)

Luís Nassif está mobilizando a blogosfera com seu Dossiê Veja, série de artigos que denunciam o antijornalismo praticado pela revista nos últimos anos. Envolve interesses corporativos, destruição de reputações, tráfico de influência. Desmascara a diretoria editorial da revista e, principalmente, Reinaldo Azevedo e Diogo Mainardi. Trata-se de estudo avassalador, embora não surpreendente, que precisa ser lido e divulgado.
O material já causou estragos. A Veja esboça uma ligeira mudança de tom nas suas edições semanais e há suspeitas de que ela tem obstruído as ferramentas de busca eletrônica aos conteúdos de matérias e postagens antigas – especialmente as que corroborariam as denúncias. A revista processa Nassif e, aparentemente, utiliza funcionários anônimos (além dos supracitados) para espalhar ataques pessoais a ele.
É compreensível que Nassif tente evitar conotações político-partidárias em sua empreitada. Seria (e continua sendo) cômodo para a revista refugiar-se numa batalha moral contra o “lulo-petismo”. Quando se trata de ética jornalística, entretanto, não cabem desculpas ideológicas.
Mas o público sabe que esse comportamento da Veja também possui um viés eleitoral. Ela é acusada de defender interesses que se beneficiam do poder conferido pelas urnas, a eles próprios ou a terceiros. Se alguém escancara essa contaminação, direta ou indiretamente mexe nas suas motivações. Por isso, é importante não esquecer que o gesto de Nassif insere-se num contexto político, pois assim será tratado pelos detratores.
Os grandes veículos, assim como a Associação Brasileira de Imprensa, fingem que a querela não existe. Não querem se expor a exumações semelhantes, principalmente depois que a Folha de São Paulo foi envolvida num dos episódios denunciados. Os comentaristas abordam a questão com cuidado, sabedores do poder destrutivo de Veja.
Esse comportamento revela muito sobre a categoria. A manipulação teria sido aberta, conhecida por todos, durante anos. E a revista só foi confrontada por iniciativa de um indivíduo isolado que, apesar da força de sua biografia e de seus argumentos, não angariou o respaldo de uma imprensa que se diz combativa e independente (ou melhor, que é combativa e “independente” quando interessa).
Imagina-se que a direção da revista tenha instruído seus advogados a causarem o maior estrago possível, financeiro e pessoal, na vida de Nassif. As despesas são altíssimas, os prazos dilatados, os resultados incertos e as primeiras instâncias, imprevisíveis. A desigualdade de forças resvala na coerção do gigante empresarial que tenta destruir exemplarmente seus desafetos incômodos.
Mesmo assim, parece alvissareira a hipótese do Judiciário ser constrangido a manifestar-se. Passou o tempo de tratar falsos depoimentos, incriminações indevidas, denúncias vazias, deturpações e mentiras como simples efeitos colaterais da liberdade de imprensa. A integridade moral dos indivíduos e o interesse coletivo são protegidos por leis que estão acima de couraças retóricas.
A nobre iniciativa de Nassif não envolve apenas os leitores de Veja, e talvez nem o público genérico de periódicos. Trata-se de esclarecer o uso antiético e quiçá ilegal da grande imprensa para favorecer determinadas facções corporativas ou políticas. Tamanha abrangência só pode ser respeitada por um Poder de envergadura equivalente, conferindo máxima lisura ideológica à decisão.
O desejável sucesso da defesa do jornalista, ainda que custoso e demorado, pode abrir um precedente histórico e contribuir para uma análise profunda sobre o jornalismo nacional.

Uribe contra a paz

O episódio ainda precisa ser esclarecido. Por enquanto, parece incontroverso que militares colombianos invadiram o Equador e chacinaram um grupo de guerrilheiros das Farc. Circulam fotos de cadáveres vestidos apenas com roupas íntimas e marcas de tiros nas costas. Venezuela e Equador mobilizaram tropas. O processo de negociação para soltura de reféns sofreu um abalo talvez irrecuperável.
O governo colombiano acusa Chávez de financiar a guerrilha, mas há muitas incongruências nas versões oficiais. A quantia (US$ 300 milhões) é exagerada para uma insurgência metida na selva, mal acomodada em casebres improvisados, utilizando armamentos antigos. E também é dinheiro demais para movimentar clandestinamente, em vilarejos rurais. A existência de registros desse pagamento nos computadores do líder Raúl Reyes soa ingênua para combatentes com a sua experiência. Também suscita indagações a própria utilização de tecnologia rastreável, dependente de fontes de energia e sujeita a danos previsíveis nas duras condições do confinamento.
O presidente colombiano, Álvaro Uribe, reelegeu-se com o discurso de dizimar a guerrilha. Conseguiu apenas fortalecê-la. Seu governo foi acusado de envolvimento com grupos paramilitares de extrema direita, controlados por narcotraficantes, mas conseguiu abafar o escândalo, suficiente para derrubar qualquer administração democrática. Os EUA protegem-no, pois necessitam de um “protetorado” para contrabalançar os governos de esquerda latino-americanos.
A sobrevivência política de Uribe, como a de George W. Bush no primeiro mandato, depende da guerra. O arrefecimento do combate significaria, para seu projeto político, uma confirmação de derrota. O colombiano sempre tomou iniciativas unilaterais para impedir negociações com a guerrilha. Recentemente, isolado pela hábil estratégia de Chávez, viu-se obrigado a ceder às pressões internacionais ou radicalizar sua posição. Escolheu a segunda alternativa, colocando em sério risco as vidas dos reféns (há quem diga que são em número muitíssimo maior do que oficialmente divulgado).
Talvez ele não tenha como corresponder às exigências das Farcs. Os guerrilheiros presos certamente passaram por torturas e maus tratos. Muitos provavelmente já morreram, sob a custódia do Estado colombiano (em prisões, não nos cativeiros da selva). Pega mal exibir mutilados, especialmente se ainda possuem condição de denunciar seus algozes. O mais revoltante é saber que a soltura de algumas dezenas de combatentes alquebrados não significaria qualquer fortalecimento para a capacidade militar das Farc. Eles estão fisicamente fora de combate, podem ser vigiados (portanto não retornariam à selva) e até confinados em regimes especiais. Bastaria um pouco de inteligência, mas Uribe, que é inteligente, não quer a paz.
Dizer que a diplomacia brasileira deveria intervir para mediar o conflito é apenas parcialmente correto. O Brasil precisa agir para impor-se como potência regional, preservando fronteiras e o equilíbrio estratégico dos países fronteiriços. Mas não pode se deixar absorver pelo confronto ideológico, pois a armadilha da identificação com a violência das Farcs (e com o “terrorismo”) é utilizada pela grande imprensa nacional para vilanizar todos aqueles que já procuraram alguma saída negociada para o impasse.
A tragédia da guerra civil colombiana é humanitária, e como tal deve ser tratada pelos organismos internacionais e governos estrangeiros. Uribe poderia, se quisesse, salvar dezenas de inocentes que fatalmente morrerão, por doenças ou execuções, graças à sua intransigência. Prefere ser cúmplice de assassinato a agir com um mínimo de decência e grandeza histórica.

domingo, 2 de março de 2008

"El metodo"

Recebeu no Brasil o título “O que você faria?”, numa afronta à inteligência cinéfila. Dirigido em 2005 pelo argentino Marcelo Piñeyro (“Kamchatka” e “Plata quemada”), baseado na peça “O método Grönholm”, do catalão Jordi Galcerán. No elenco espanhol, entre outros, o jovem Eduardo Noriega, que já atuara magistralmente em “Plata” e hoje tenta carreira no cinema estadunidense.
Transcrição fiel da peça (já encenada no Brasil), o filme transcorre quase todo numa sala de reuniões, onde sete candidatos a um cargo executivo são submetidos ao tal método de seleção, pouco ortodoxo. A riqueza do texto quase faz a direção supérflua. É um retrato ameno da insensibilidade, da hipocrisia e do espírito competitivo que imperam nos altos escalões empresariais.
O método é fictício, mas perde em crueldade para as práticas de recursos humanos da vida real. Esse aspecto inovador parece inverter os critérios do senso comum e resulta numa incômoda indagação sobre a validade de qualquer processo seletivo.

sábado, 1 de março de 2008

Epson nunca mais

Utilizei por muito tempo uma ótima impressora Epson, jato de tinta, que fazia as artes-finais do antigo escritório. Na época, as máquinas a laser eram ficção científica. Depois houve uma abertura radical no mercado de informática e, com a chegada de novos fabricantes, os preços caíram. As marcas reconhecidas, mais caras, tiveram de se adaptar. Enganando-nos.
O primeiro logro apareceu nos valores. Fabricantes famosos oferecem preços baixos e compatíveis com os concorrentes menores. Por algo em torno de R$ 200,00 leva-se uma Epson honesta. A surpresa vem ao comprar o primeiro cartucho de tinta. São 30 pratas cada, às vezes mais. E quem fabrica as peças? A própria Epson, claro. "Cartuchos genéricos danificam sua impressora", dizem. Com uso constante, em um ano, paga-se o equivalente a cinco máquinas.
O segundo logro, mais insultante, descobri recentemente, com outra Epson, uma multifuncional (misto de impressora, copiadora e scanner). A jogada, inacreditável, é que os cartuchos, além de caros, devem ser trocados regularmente, mesmo que não estejam vazios. E o manual de instruções tem a pachorra de antever esse absurdo. Sim, a tinta decanta, seca e entope o dispositivo. Compre outro, senão não vai funcionar.
Em outras palavras, inventou-se um método de garantir um gasto colateral obrigatório para o próprio funcionamento do produto. Não adianta usar pouco hoje e tentar novamente daqui a duas semanas. Você precisará comprar cartuchos de 60, 70 mangos hoje e outros do mesmo preço daqui a duas semanas. Se quiser gastar a tinta rápido, claro, ela vai acabar rápido; e nova compra será necessária. Ah, e são quatro cartuchos: magenta, azul, amarelo e preto. Todos, repito, todos devem ser trocados juntos.
Paga-se, digamos, R$ 500,00 numa boa multifuncional Epson. Se o idiota não quiser jogar esse investimento fora, precisa gastar R$ 2 mil por ano em tinta que dificilmente utilizará por completo. E com o reconhecimento do manual de instruções.
Para completar, aquela Epson ordinária e baratinha, que usava para trivialidades, adoeceu depois de três anos de parco uso. Levei-a à assistência técnica e pemba!: o conserto sairia por exatos R$ 256,00 – bem mais caro do que modelos melhores. Virou enfeite, ou melhor, um troféu de bobalhão do ano.
Por tudo isso, basta de Epson. E se todas as marcas forem assim, volto ao velho e bom papel carbono.