A repentina onda de detenções de brasileiros no aeroporto de Barajas, em Madri, provavelmente esteve relacionada às eleições espanholas. Passados os debates da campanha, tudo tende a voltar ao “normal”. As autoridades brasileiras fizeram o que podiam, isto é, aplicaram o princípio fundamental da reciprocidade, que rege toda diplomacia. A imprensa local, subserviente como só ela, debaixo de seu complexo de cucaracha, achou um absurdo devolver espanhóis e chamou a medida de “retaliação”.
Pois usem retaliação, se quiserem. Foi pouco e bom. Pouco porque não tratamos espanhóis, ou gringos quaisquer, com a mesma brutalidade cínica e preconceituosa que eles nos reservam em seus países. Se apenas um europeu ficasse detido numa salinha de Cumbica por três dias, sem acesso a pertences, incomunicável, comendo gororoba, seria um escândalo internacional. Nossas elites cosmopolitas fariam passeatas pelos direitos humanos dos pobres painhos. E, definitivamente, algo melhoraria no tratamento recebido por brasileiros honestos em dependências estrangeiras.
E foi bom porque, em primeiro lugar, os abusos espanhóis arrefeceram. Mas também porque, nesse jogo sem inocentes, é fácil uma das partes virar capacho da outra, submetendo-se a qualquer absurdo em silêncio. Prova dessa passividade foi observada na própria imprensa, que tratou imediatamente de justificar as detenções deles (busca por trabalho ilegal, prostituição, baderna no aeroporto, falta de dinheiro), sem utilizar os mesmos critérios a nosso favor. Como se não houvesse espanhóis, ou europeus, ou estrangeiros em geral, envolvidos com prostituição infantil, tráfico de drogas, biopirataria e até mesmo crimes comuns, em território brasileiro.
A questão do controle de fronteiras é ardilosa. As listas de requisitos são basicamente as mesmas para entrada em todos os países com relações diplomáticas. Ninguém as aplica no cotidiano, porque são tolas e desnecessárias. Segundo uma dessas regrinhas, o turista que vai passar vinte dias na Europa precisa levar 1400 euros nos bolsos, correndo o risco de ser roubado (sim, lá também existem ladrões) e perder mais de R$ 3 mil na brincadeira. Que diferença faz para a Noruega se eu estou andando com tal fortuna enfiada nas meias, na cueca, no sovaco, ou se a possuo na segurança dos caixas eletrônicos?
Outra regrinha prevê que o cidadão já chegue com todos os hotéis pagos; se descobrir que caiu num dos muitos golpes da internet e pagou por uma espelunca infecta, danou-se, porque assim o quiseram os legisladores islandeses. Mas que diferença faz para a Islândia se eu carrego um comprovante de reserva numa pocilga qualquer, que pode até mesmo ser fictícia? Ter pagado trinta moedas para um albergue me impediria de trabalhar em qualquer país?
Mas o importante a ter em vista (inclusive quando se viaja) é a irrelevância dos critérios: as autoridades aduaneiras têm, por tratados internacionais, a prerrogativa de negar entrada a qualquer pessoa, por motivos tão subjetivos quanto secretos. Nem explicar precisam. O problema não é que esse princípio seja aplicado a cientistas brasileiros, mas que nós não possamos fazer o mesmo com eles, até explicitamente para exigir respeito, sob o risco de parecermos grosseirões.
Quem cruza fronteiras com freqüência já descobriu que o controle é aleatório, visual, contraditório, e principalmente inútil. Dada a impossibilidade prática de revistar e interrogar rigorosamente cada um dos milhares de passageiros que desembarcam nos grandes aeroportos, os funcionários limitam-se a selecioná-los por seu arbítrio (e seus preconceitos). Etnia, gênero, vestimentas e talvez nacionalidades se transformam em critérios de averiguação.
Desnecessário explicar quão enganadoras tais aparências podem ser. Sempre passei incólume em todas as alfândegas que cruzei – certa vez, por puro esquecimento, entrei num avião, na Suíça, com um canivete na bagagem de mão. Ninguém nem tchum. Ao meu lado, famílias de viajantes com feições andinas tomavam gerais dignas da PM em dia de jogo.
No momento em que se abre exceções, todo o sistema de controle desmorona. É impossível ser eficaz por amostragem, pois, nesse caso, um único engano pode causar uma tragédia de proporções desastrosas. No fundo, as autoridades aduaneiras nada podem fazer de efetivo e se contentam em encenar esse teatrinho da super-rigidez primeiro-mundista que confere uma aura de controle à coisa toda, sem que exista qualquer controle de fato.
Claro, eles também sabem que a ilusão da superioridade depende muito da coreografia utilizada. Para que a arrogância européia faça algum sentido, é necessário envolver todos os viajantes no espetáculo das desigualdades mundiais, onde abusa quem pode e obedece quem quiser conhecer o Prado.
É por essas e outras que nos parece tão inimaginável um presidente venezuelano mandar o rei Juan Carlos calar a maldita matraca.
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