quinta-feira, 27 de junho de 2019

Os vazamentos provam



Os diálogos da Lava Jato divulgados até agora pelo Intercept são suficientes para anular a condenação de Lula. Provam, portanto, sua inocência. Essa prerrogativa inata da cidadania é restituída com o cancelamento de um ato judicial que venha a suspendê-la. A nulidade extingue o todos os componentes do processo.

Poucas vozes críticas repercutem de maneira clara esse aspecto óbvio e chocante. Mesmo o noticiário que denuncia o vexame ignora as suas implicações e o restringe à maleável seara ética. A moda entre os comentaristas é o negacionismo blasé, “decepcionado” com Sérgio Moro mas não com seu discurso, tratando a legislação como uma narrativa suspeita qualquer.

O motivo do silêncio reside na lógica inescapável dos fatos: se a prisão tirou Lula de uma disputa sucessória em que ele era favorito e se os vícios que anulam a condenação incluem o explícito viés político de seus artífices, a Lava Jato influiu deliberadamente no resultado das eleições presidenciais. E de maneira inconstitucional.

Muita gente participou da farsa. Da imprensa às cortes, passando pela militância digital e pelo campo jurídico, a percepção dos arbítrios contra Lula foi generalizada. Quem se omitiu o fez por adesão aos desdobramentos político-eleitorais da Lava Jato, fossem restritas à derrota do lulismo, fossem abarcando também a vitória de Jair Bolsonaro.

O apoio desses grupos ao Intercept é oportunista, contrariado e reticente. Visa domesticar os vazamentos com leituras higiênicas e descontextualizadas, que só admitem a inocência dos justiceiros. Moro agiu por soberba e afoiteza, não para favorecer o candidato que o tornaria ministro. Uma fraude eleitoral gigantesca não diminui o “legado” da Lava Jato.

O esforço apaziguador equivale à tentativa de criminalizar o Intercept, ao ridículo terrorismo com a ameaça de “anular tudo” (como se o caso Lula tivesse equivalentes) e à bobagem de que TRF-4, STJ e STF podem ser cúmplices dos delitos e ao mesmo tempo legitimá-los. Tudo isso faz parte de uma estratégia para ocultar aquilo que importa realmente. O que foi provado.

Não me iludo com as decorrências práticas das revelações, especialmente se vierem a atingir o STF, que, acuado, buscará o amparo dos fascistas. E será fácil juntar meia dúzia de juízes e desembargadores antipetistas para devolver Lula à cadeia, na improvável hipótese de soltura. Sobram mentiras para legitimar as arbitrariedades impunes do Regime de Exceção.

Isso não reduz a enorme importância histórica, pedagógica e simbólica das divulgações. Mas o cenário se aproxima de um paradoxo: quanto maior o escândalo, menos destaque receberá a nulidade jurídica da prisão de Lula e menor ainda será a consciência pública do golpe eleitoral da Lava Jato. A perplexidade se transformará aos poucos numa performance vazia.

O triunfalismo catártico do campo progressista corre o risco de despolitizar as revelações. Primeiro, tornando-as espetáculos da suposta putrefação institucional que embala o fascismo. Depois, permitindo que os bastidores dos vazamentos ofusquem seu conteúdo. Finalmente, supondo que punições individuais e autocríticas solenes encerram o assunto.

As reportagens do Intercept são provas cumulativas dos mesmos fatos originais. Resta apenas sedimentar esse nexo probatório nos debates vindouros, de maneira explícita e incondicional. Só assim as coisas passarão a fazer algum sentido, tanto naquilo que as informações ensinam sobre o passado recente do país, quanto no próprio gesto de divulgá-las.

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