quinta-feira, 25 de julho de 2024

Jornalismo de memes



Publicado no Observatório da Imprensa

Uma série de montagens visuais com o rosto do ministro Fernando Haddad surgiu nas redes bolsonaristas. As peças fazem trocadilhos pejorativos com referências midiáticas, no mesmo acabamento rudimentar que (não) disfarça o profissionalismo da autoria.

São os tais “memes” (iconotextos, na língua semiótica), de existência quase tão antiga quanto a da própria internet. Há milhões dessas figuras em circulação diária, das mais variadas estirpes, envolvendo celebridades, anônimos, bichos, personagens etc.

De repente, simultâneos, Folha, Estadão, Globo e outros veículos informativos trataram de divulgar o material contra Haddad. Algo que ficaria restrito a nichos radicais ganhou a atenção de um público mais amplo, endossada pelo discurso jornalístico.

Em outras palavras, a mídia que se afirma democrática e legalista ajudou a disseminar material enganoso, ofensivo a uma autoridade pública, não muito diferente dos produtos da indústria de crimes cibernéticos do fascismo. Mas qual seria a notícia no episódio?

Os editores têm duas respostas possíveis. De um lado, entenderam que houve um crime. Então precisariam seguir os protocolos éticos da denúncia jornalística: nomear o delito, esclarecer os fatos deturpados, cobrar as autoridades responsáveis. Apurar.

Isso não aconteceu. As difamações receberam tratamento de ironia crítica legítima. Haddad e o governo ocuparam espaços de contraponto, como se tivessem justificativas a dar. Como se os próprios veículos não soubessem discernir as falácias insinuadas.

De outro lado, a notícia poderia ser o alcance das mensagens. Mas a cobertura aumentou essa visibilidade no ato de repercuti-la. Em suma, criou o fenômeno que motivaria o destaque inicial. Potencializou o dano malicioso para explorar seu interesse.

Critério de noticiabilidade, sempre discutível, é terreno propício para o cinismo. Entre os registros literais das bravatas fascistas de Jair Bolsonaro e os artigos que julgam os discursos de Lula, o rigor seletivo das redações exala seus pendores ideológicos.

Tão sisudos para a falta de provas em acusações incômodas, os fiscais da verdade não acham correto problematizar os memes contra Haddad. Agências que denunciam “fake news” da esquerda fazem vistas grossas diante de material similar que a atinge.

Há anos, centenas de imagens ridicularizam Sérgio Moro, a família Bolsonaro, Tarcísio de Freitas, ministros do STF e Arthur Lira, com popularidade e relevância contextual, mas são ignoradas pela imprensa. A reputação de Haddad não inspira o mesmo cuidado.

O problema já seria grave se ficasse na ingênua adesão ao vale-tudo digital, que certo jornalismo acha eficaz para reverter sua crise de legitimidade. Nivelando-se pela estupidez hegemônica, esse campo vira apenas outra ferramenta propagadora de memes.

Ocorre que a serventia é mais profunda e embaraçosa. O ataque à política econômica de Lula tem viés eleitoral. E o método da campanha, misturando escracho e manipulação, revela um pedigree bastante claro. Só precisamos entender de quem estamos rindo.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

A questão evangélica



“A esquerda precisa dialogar com os evangélicos”. Essa frase, muito repetida, permite várias leituras. No sentido literal, gregário e educativo, é irrefutável. Mas não vai além da constatação meio acaciana de uma necessidade inerente à rotina política.

Em termos pragmáticos, ligados à formulação de agendas comuns, a ideia é eficaz apenas se envolver representantes de igrejas, governos e partidos. Seria impossível chegar a consensos amplos com as numerosas, variadas e dispersas bases de fiéis.

Mas a proposta dialógica leva a raciocínio unilateral: não cobra dos líderes evangélicos que tomem a iniciativa ou se exponham a princípios diferentes dos seus. No fundo, a ideia exige concessões do campo progressista. Que não pode e não deve fazê-las.

Primeiro, porque o resultado seria um programa conservador. Apesar de heterogêneo, o pluriverso evangélico tem viés ideológico predominante, com vastos setores inflexíveis. E o meio-termo entre a esquerda possível e a extrema direita fica longe do centro.

Segundo, porque as cúpulas evangélicas são alinhadas a interesses políticos que se definem pelo antagonismo com o campo progressista. Uma incompatibilidade, quase sempre ostensiva, que serve como ferramenta de persuasão dogmática e partidária.

Lula tentou seduzir os fiéis com discursos conservadores e anuência a certos regressos legislativos. As bancadas radicais, inclusive as religiosas, usaram suas pautas pré-históricas para exorbitar o custo civilizatório da aproximação. Ou seja, para sabotá-la.

Esse desejo de polarização amiúde resulta num confronto aberto com os setores laicos. Então a performance indecorosa serve como atentado simbólico ao imaginário secular e, nos casos mais agressivos, como propaganda insurrecional de bandeiras teocráticas.

Minando a pacificação da sociedade, aliando-se a projetos totalitários de poder e divulgando estereótipos negativos contra valores da cidadania, as lideranças evangélicas criaram um problema institucional. O varejo da militância política não irá solucioná-lo.

Organismos sociais e partidos progressistas têm direito e obrigação ética de constranger o STF a redefinir os limites da atividade político-religiosa. Começando pelos ilícitos mais antigos e salientes, romperiam a blindagem legal e discursiva do abuso dogmático.

Propaganda eleitoral em espaços de culto, proselitismo religioso em repartição pública e candidatura com título clerical são exemplos de violações ao princípio constitucional da laicidade do Estado. Ultrapassam as liberdades de expressão e de exercício da fé.

Só há separação de duas instâncias quando ambas renunciam ao contato. Um Estado que permite influência religiosa em seus procedimentos não é laico. Igrejas que desfrutam de direitos absolutos servem de abrigo para a apologia impune do fascismo.

Nada disso envolve as intenções e os valores das bases evangélicas. O receio de afrontá-las é pueril. Não esqueçamos que a resistência progressista à imposição das pautas de “costumes” foi simultânea à melhora na popularidade do governo federal.

quinta-feira, 13 de junho de 2024

São os “costumes”, companheiro



Pesquisas recentes sobre a popularidade do governo Lula ressuscitaram na esquerda a antiga tese da “falta de comunicação”. As pessoas não estariam informadas dos avanços que as beneficiam ou que podem beneficiá-las no futuro próximo.

Essa leitura é discutível. Administrando heranças ruinosas, sabotado por um Congresso reacionário, Lula recebe aprovação equivalente às suas imensas dificuldades. Apesar de compreensíveis, porém, os números exigem reação imediata.

A urgência decorre da harmonia entre as curvas de rejeição ao governo e de repúdio a agendas progressistas, inclusive as que Lula evita defender. Quanto mais conservador fica o eleitorado, maior sua antipatia por um presidente que se esforça para afagá-lo.

Em outras palavras, a tática apaziguadora de Lula alimenta uma potência antagônica a ele próprio. Seu receio de criar atritos em torno das pautas de “costumes” fortalece a hegemonia da direita sobre um repertório discursivo inamistoso e radicalizado.

Mas por que os tais “costumes”? Porque eles agregam um componente moralista que legitima a demonização de inimigos e a disseminação impune de falácias eleitoreiras. São antídotos contra as estatísticas sobre inflação, emprego, desmatamento etc.

Quando o Congresso aprova uma lei de “costumes”, o ganho político é do parlamentar bolsonarista que sobe em púlpitos e palanques regionais para maldizer o governo. Tidos como vitórias por esse campo, os retrocessos fortalecerão a extrema-direita em 2026.

O projeto de poder focado “apenas” na estabilidade econômica e no combate à miséria caducou. Esses apelos racionais são neutralizados por estímulos opostos, emotivos e religiosos, de setores que atuam em simbiose com as ubíquas plataformas digitais.

O problema de comunicação do governo existe, portanto, mas tem natureza ideológica, não gerencial. É inútil mostrar eficácia para cidadãos predispostos a ignorá-la. Ou Lula desestabiliza esse condicionamento ou será atropelado por seus efeitos.

O desafio envolve quebrar o monopólio discursivo da direita em certos temas, levando-os para os terrenos constitucional, científico e humanitário. E afirmando uma identidade clara do governo, de intransigente resistência à cruzada obscurantista.

Isso poderia ser realizado através de campanhas na TV e no rádio, apresentando textos informativos, baseados em fontes jurídicas e especializadas. Com respaldo institucional e talvez a assinatura conjunta de universidades e de órgãos do Judiciário.

Fake news, aborto, Estado laico, homofobia e racismo são exemplos de tópicos a explorar. Sem confronto nem palpite, mantendo o estrito interesse público e a função educativa dos anúncios. Nenhuma brecha para as patrulhas da polarização.

As saudáveis polêmicas resultantes lançariam dúvidas sobre os indecisos e mostrariam à sociedade que os “costumes” vão além de mitos, valores e crenças. Também dariam suporte aos freios contramajoritários que o STF hesita em aplicar no arrastão legislativo.

Se Lula não possui autonomia sequer para a divulgação de esclarecimentos oportunos, o risco de impeachment é o menor dos seus dilemas. Chegou a hora de alguém recalibrar o pragmatismo do governo, enquanto ainda restam alternativas de resistência.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

A falácia da democracia absoluta



Lula afirmou numa entrevista que democracia é “conceito relativo”. Falava da diferença de critérios usados por ele e pela imprensa para qualificar certos países. Os analistas pinçaram a frase do contexto, deram-lhe verniz abstrato e criaram uma falsa polêmica.

O episódio simbolizou a obsessão da mídia conservadora em sagrar-se porta-voz da única ideia correta de democracia, alinhada à pauta geopolítica dos EUA. Sugerindo que o ceticismo da esquerda em relação a esta perspectiva conota índole autoritária.

A robustez democrática que falta aos despotismos deveria ser a mesma que a patrulha enxerga em seus modelos civilizatórios. Afinal, ela defende critérios absolutos. Quando se trata do eixo aliado, porém, a intransigência dá lugar a mitos e contextualizações.

Não havendo autoimagem positiva que supere o rigor teórico, tratam de ligá-la a uma essência inata, imune a juízos. O voto indireto e o bipartidarismo, por exemplo, emanam as boas tradições iluministas, que os verdadeiros democratas “sabem” reconhecer.

O problema seguinte é lidar com as vergonhas das democracias “realmente existentes”. Assim os puristas são obrigados a normalizar o racismo, a censura, a repressão, o abuso judicial e outros vícios generalizados, avessos a princípios democráticos rudimentares.

Todos esses arbítrios servem a projetos de poder. E nenhum deles tem maior respaldo legal ou representativo do que similares de regimes despóticos. Jornalistas presos, livros proibidos e dissidentes silenciados valem o mesmo em qualquer recanto do mundo.

Querem aplicar os valores de forma “objetiva”? Pois descrevam as condenações de Julian Assange e de Lula para diversos cientistas sociais, sem identificar as vítimas nem os algozes, e observem quantos associam os episódios a ditaduras ou a democracias.

Os malandros respondem que depende da maneira como os fatos são expostos. Podemos denunciar as “miudezas administrativas” que tiraram a candidata venezuelana das eleições. E podemos afirmar que Dilma Rousseff caiu por causa de “crimes fiscais”.

É o que fazem os guardiões da doutrina: legitimam os governos Temer e Bolsonaro, mas condenam aparelhamentos institucionais de outro viés ideológico. Negam e aceitam a constitucionalidade vigente de acordo com os golpistas que a manipulam.

Levada a sério, a inflexibilidade conceitual nivelaria os países pelos denominadores abusivos comuns. Não chegamos a tanto porque essa bobagem funciona apenas como instrumento retórico da direita, e jamais para falar de seus próprios exemplos.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

"Acrimônia" reeditado

 


"Acrimônia", livro de contos que publiquei em 2002, recebeu uma edição digital, "revista e aprimorada". 

A ideia inicial era apenas adaptá-lo ao Novo Acordo Ortográfico, mas, previsivelmente, acabei reescrevendo vários trechos. Espero que a versão definitiva faça justiça aos imensos trabalhos de criação e recriação que a geraram ao longo dos últimos vinte e dois anos.

Tenho particular apreço por essa obra. Graças a ela, fui convidado para o programa Provocações, de Antônio Abujamra. Também abri canais de rica interlocução com escritores e críticos, cujo apoio generoso embalou meus sonhos criativos da época.

O acesso ao livro é gratuito e pode ser realizado aqui.

terça-feira, 16 de abril de 2024

As ruas perderam a esquerda?




Depois de alguma polêmica, a esquerda abandonou a ideia de realizar manifestações exigindo a prisão de Jair Bolsonaro. Os motivos apontados foram a natureza jurídica da pauta, o risco de violência e a suposta inevitabilidade da condenação.

Só que esses raciocínios jamais impediram qualquer ato público, tampouco o seu êxito. Na verdade, as críticas vinham da correta impressão de que os eventos fracassariam (no jargão digital, “flopariam”), agravando os paralelos inevitáveis com o ato bolsonarista.

A abertura de escopo temático e a descentralização atenuaram o embaraço comparativo, mas não o problema original que o anunciava: a pequena quantidade de participantes. Nenhuma das iniciativas atingiu volume digno do teor das pautas abordadas.

Há algo errado nessa fatura. O número de pessoas que apoiam bandeiras progressistas (inclusive a prisão de Bolsonaro) é suficiente para encher, ao mesmo tempo, avenidas e praças em todos os grandes centros urbanos. Basta calcular pelas pesquisas.

Desse contingente, a fração que comparece a atos públicos é irrisória. E não menos absurda que a inexistência de passeatas contra os ataques golpistas do ano passado. Em que país de tradição participativa o “8 de janeiro” ficaria sem protestos à altura?

Não acho que a esquerda “perdeu as ruas”. O respaldo popular a seu programa é sólido e extenso, até majoritário em alguns tópicos, ainda que partidariamente inconvicto. Só que a adesão às propostas não se materializa no impulso de reivindicá-las.

As explicações costumeiras (julho de 2013, alienação, crise de representatividade) são mais fatalistas do que produtivas. E não é verdade que apenas a direita possui recursos para divulgação, transporte e logística, supondo que façam tanta diferença no caso.

Essas desculpas acomodam partidos e movimentos na fórmula das convocações afoitas, da publicidade restrita, do zelo para apenas marcar posição, respeitando os pruridos de Lula. Como se realmente não pudessem utilizar estratégias mais eficazes.

Ao mesmo tempo, vastas parcelas da população deixam de cultivar o espírito gregário e combativo que ajudaria os democratas a barrar o avanço do obscurantismo. A apatia das ruas exibe o desperdício de um potencial mobilizador imprescindível na atualidade.

sábado, 16 de março de 2024

Rumo a Gilead



Os movimentos contrários à descriminalização da maconha para uso pessoal revelam os tentáculos retrógrados que aos poucos estrangulam o futuro do país. Não se trata, repito, de conservadorismo: é uma ideologia obscurantista sem molduras partidárias ou morais.

Esse espírito anticientífico prolifera no STF, no Congresso e, surpresa nenhuma, no Conselho Nacional de Medicina. Sua marca é a agressividade falaciosa: argumentos pueris, números impossíveis e paralelos ridículos como formas de violência simbólica.

A brutalidade manifesta-se no descaramento da mentira óbvia, que insulta o bom senso e o saber técnico. É um soco de ignorância nos valores civilizatórios, aliado ao desprezo ofensivo pelo interesse público. Funciona como ostentação de soberania retrógrada.

A expressão “pauta de costumes” faz parte do engodo. Iguala conhecimentos empíricos a crenças e valores, pesquisas a superstições. Em vez de comprar essa bobagem, Lula deveria refutá-la com uma campanha educativa nacional, organizada por especialistas.

Entre perplexos e indiferentes, os campos jurídico, jornalístico e acadêmico silenciam. Ninguém ousa romper as bolhas digitais e corporativas para, em nome da constitucionalidade, questionar os chutes absurdos, exigir fontes qualificadas, cobrar o decoro esquecido.

Freios e contrapesos institucionais só vigoram com heterogeneidade ideológica. Não há como deter o obscurantismo depois que ele se torna majoritário tanto no Congresso quanto nos tribunais superiores. Simplesmente porque não sobra a quem recorrer.

O caso da maconha revela como estamos próximos dessa “tempestade perfeita”. Quase metade do STF adotou as fraudes proibicionistas. Mais um ou dois votos endossando a autonomia legislativa e o retrocesso em gestação no Senado torna-se permanente.

Vimos o trailer da distopia nos golpes da Lava Jato, que derrubaram uma presidente legítima e alavancaram um fascista graças à coesão oportuna entre os Poderes. Mas hoje não lidamos com mandatos. O pesadelo que se anuncia terá longuíssima duração.

A cada abuso impune o rolo compressor avança mais. Sua força é a irreversibilidade. Um centímetro de ruína leva décadas para ser corrigido, na otimista hipótese de surgir o necessário ambiente político. E o remendo nunca alivia o estrago consumado.

Ironicamente, a maconha está servindo como “porta de entrada” para a naturalização da barbárie. Sem obstáculos contramajoritários, o misticismo instaura os precedentes que levam à hegemonia das pautas fascistas. Os democratas não perdem por esperar.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Lula falou e disse



Lula às vezes comete erros falando de improviso. A maioria deles é irrelevante e serve apenas para o comentarismo de direita marcar posições letradas e “corretas” que aliviem seus hábitos peçonhentos. A repercussão dura pouco e nada produz.

Nos casos incômodos, a forma ruim prejudica um conteúdo louvável. Foi o que ocorreu na recente declaração sobre Gaza. Lula deveria ter sido mais cauteloso para abordar o tema, nas atuais circunstâncias, independentemente de seus bons propósitos.

Mas os rigores sisudos que valem para sua opinião valem para a opinião dos críticos. É fácil refutar enunciados inexistentes. O contrário do que Lula não afirmou pode ser inquestionável e não ter relevância alguma no debate. Sejamos, então, rigorosos.

Lula não citou o Holocausto, menos ainda o associou a Gaza. Não sugeriu que todo judeu é israelense. Não poupou o terrorismo. Não relativizou os campos nazistas de extermínio. Não menosprezou a dor de milhões. Não igualou bombas a câmaras de gás.

O único paralelo feito por Lula envolveu Hitler e Netanyahu. De modo mais literal, os massacres de Gaza e um embreante cronológico indeterminado (“quando Hitler resolveu matar os judeus”), remetendo a decisão necessariamente anterior ao Holocausto.

Do projeto ignominioso de Hitler à sua obra nefasta muita coisa ocorreu. A omissão da comunidade internacional, por exemplo, metida em polêmicas inúteis sobre como qualificar o óbvio. E o cinismo dos apaziguadores que tripudiavam dos “alarmistas”.

Sim, logo adveio o Holocausto. Mas quem recusa reflexões alusivas às suas origens nega-lhe a historicidade que o torna irrefutável e que o legitima como referência para as gerações atuais. Os massacres de todas as épocas têm algo em comum.

Curioso é ver analistas “democratas” reagirem à denúncia misturando o discurso de Netanyahu com relativizações semânticas de seus crimes. Diante de um genocídio bárbaro, apoiado pelos EUA, o problema foi Lula abominá-lo mencionando Hitler.

Em outra lógica tortuosa, a imparcialidade se confunde com equivalência grotesca. Seu raciocínio condena Netanyahu e Lula igualmente, admitindo o morticínio deliberado “mas” rejeitando também as palavras de indignação. É uma escolha muito difícil.

Ainda que o próprio Lula endossasse as leituras adotadas, continuaria sendo ridícula a interpretação automática, negativa, de seu apelo humanitário. A intuição de garimpar vestígios antissemitas em desabafo que pedia solidariedade por civis inocentes.

Tudo que a celeuma produziu foi a consolidação da imagem de Lula como defensor de uma causa justa. No polo oposto, um aliado de Bolsonaro o substitui no papel de "vilão útil" da direita midiática. O tom religioso das análises não deveria causar surpresa.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Calúnia proxy



O STF decidiu que veículos jornalísticos podem ser punidos por declarações falsas de entrevistados. O acórdão antecipa o modelo regulatório que tende a ser aplicado à mídia digital, igualando espaços noticiosos e plataformas de comunicação. É razoável.

Primeiro porque ficou impossível singularizar os discursos jornalísticos no hibridismo da internet. Segundo porque, em consequência, as medidas preventivas e corretivas para danos virtuais apresentam poucas variações de um tipo de conteúdo a outro.

Na seara lavajatista, o ramerrão cívico dos descontentes disfarça uma singela defesa da liberdade de publicar mentiras. A ideia é garantir a estratégia da “calúnia por procuração”, reservada para vésperas eleitorais, com estragos sabidamente irreversíveis.

Não há interesse público em falácia. Ninguém está proibido de expor uma acusação verossímil, desde que assuma o risco da atitude. Investigação ajuda, mas a maioria dos problemas se evita com honestidade, bom-senso editorial e sigilo de fonte.

Apesar de abjeta, a perseguição a veículos e profissionais vulneráveis não chega ao volume dos delitos conscientes que usam pretextos jornalísticos. Para cada denúncia legítima circulam centenas de falsidades com efeitos imediatos, amplos e duradouros.

Até a ideia de isentar transmissões ao vivo soa perversa. Todo ilícito passará a ser cometido nesse formato, viralizando em segundos. Mas o STF notará a armadilha quando o primeiro deslize atingir o poderoso errado, quiçá um de seus ministros.

Se existe solução para o arbítrio judicial, ela decerto não brotará do vácuo legislativo. Alguém precisa delimitar e fortalecer os mecanismos reparatórios cabíveis à mídia, inclusive como forma de valorização dos corretos procedimentos jornalísticos.

Mas parte da imprensa não gosta desses remédios. Prefere gozar as excepcionalidades de um sistema doente a torná-lo saudável, eficaz e justo. Seu padrão de independência é fiscalizar e julgar a si mesma, usufruindo as benesses impunes dos monopólios digitais.

Um livro de ficção acaba de ser proibido (sob a anuência do STF) porque um juiz local se identificou com o protagonista abusador. Não apareceu uma nota sequer de repúdio no comentarismo cidadão. “Cala a boca já morreu”, repetem os bajuladores da corte.

O avanço do obscurantismo justifica a relativização indiscriminada de direitos, que por sua vez naturaliza a censura obscurantista. O motor desse círculo vicioso é a falta de regras claras distinguindo a liberdade de expressão e o cinismo de tribunais e empresas.

Lamento admitir que as utopias digitais avinagraram. O que temos para hoje é garantir a sobrevivência do jornalismo democrático, para não falar da própria democracia, através de novo paradigma ético e legal. Talvez um dia possamos torná-lo obsoleto.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Paga quem quer?



O STF permitiu o recolhimento da contribuição sindical, desde que o trabalhador possa recusá-lo. A decisão, meio capenga, não esclarece como o veto deverá ser formalizado e abre espaço para futuros conflitos judiciais e retrocessos legislativos.

Evitando afrontar a reforma trabalhista, o STF endossou a mercantilização de um direito constitucional. Sindicato presta serviço. Curiosamente, porém, segue uma lógica oposta à do consumo: embora todos se beneficiem dos resultados, só os remunera quem quiser.

Livre-arbítrio com prejuízo alheio é refresco. Não vemos defensores do sindicalismo gratuito ousando questionar a obrigatoriedade das dezenas de tributos que os cidadãos pagam sem receberem contrapartidas satisfatórias ou sequer tangíveis.

Se o funcionário pode abrir mão do sindicato, poderia também recusar os serviços do chamado Sistema S, amealhando a parte que lhe cabe nesse imposto. E o empresário que repudia o viés golpista das federações tem o direito sacrossanto de não financiá-las.

Outro farisaísmo peçonhento é a ideia de acabar com a unicidade sindical. Como de costume, a cartilha meritocrática esconde um projeto malsão: divididas pelo faroeste ideológico, as categorias ficariam reféns dos grupelhos alinhados ao patronato.

E, de novo, o espírito neoliberal vale apenas para os inimigos. Não serve, por exemplo, para derrubar a unicidade das guildas profissionais. Que tal permitir várias ordens de advogados e vários conselhos de medicina, arquitetura, publicidade, jornalismo?

A concorrência aumentaria a “produtividade” dos sindicatos, mas não a dos escritórios corporativos? A discórdia política desobriga o financiamento de greves, mas não o de apologia bolsonarista? Quem decide qual representação é mais legítima?

Essas comparações parecem absurdas, mas são estimuladas pelos próprios raciocínios contrários aos sindicatos. É absurdo tratá-los excepcionalmente em função de prerrogativas que, por natureza, demandariam observância igualitária e universal.

O idílio optativo capitalista é dominado pelo financiamento compulsório de monopólios e cartéis. Isso ocorre do comércio varejista aos serviços públicos essenciais, passando pela tecnologia digital e pelos bens de entretenimento e cultura. Tudo normalizado.

Mas, no fundo, a intenção não é aumentar a liberdade de escolha dos trabalhadores, e sim neutralizá-la. A fraqueza de seus representantes atinge também as demandas que eles incorporam, reduzindo-as a um “possível” sempre indesejado e arbitrário.

Resta muito a debater sobre o papel dos sindicatos frente aos novos paradigmas das relações de trabalho. Por enquanto, já sabemos que a penúria do sindicalismo produz reajustes salariais nulos, perda de direitos e sobrecarga compulsória de jornadas.

Quem associa essas mudanças à exploração impune da mão-de-obra faz o jogo dos exploradores. E o melhor teste para as boas intenções dos reformistas é verificar até que ponto aceitam generalizar sua retórica modernizante e sua demagogia libertária.

domingo, 24 de setembro de 2023

É tarde para reclamar de Zanin



O voto do ministro Cristiano Zanin contrário à descriminalização da posse de maconha exibiu o prejuízo de sua indicação ao STF. Lula errou. Mas parte dessa culpa também precisa ser dividida com a militância progressista, incluindo os críticos da escolha.

A manifestação de Zanin incomodou sobretudo pela baixa qualidade técnica. Repetindo lugares-comuns do arcaísmo proibicionista, ignorou décadas de estudos sobre o tema. Afastou-se das tendências de setores esclarecidos da própria direita.

Não há justificativa legal ou científica em penalizar a “posse para uso” de qualquer substância, principalmente da maconha. A inconstitucionalidade da legislação atual só não é mais evidente do que seus malefícios sociais, educativos e humanitários.

Trata-se de matéria objetiva, abordada em vasto repertório acadêmico. O proibicionismo aciona “costumes” e palpites contra argumentos racionais, estatísticos, verificáveis. Admite o óbvio, por decoro, mas recusa os desdobramentos lógicos de sua admissão.

Essa atitude não é conservadora. É negacionista. Não faz sentido naturalizá-la depois de combatermos suas versões pandêmicas e eleitorais. A questão vai além dos projetos de Lula, dos demais votos de Zanin e até da importância da droga para os debates do país.

Ocorre que, salvo exceções isoladas, o PT esnobou a legalização por muito tempo. Adotou-a, no embalo do STF, para amenizar o constrangimento com Zanin e dividir os louros da provável vitória da tese. O silêncio de Lula a respeito é, digamos, eloquente.

Outros setores progressistas também despertaram atrasados. Alguns dos mais furiosos críticos de Zanin apoiaram Marina Silva quando ela prometeu um absurdo plebiscito sobre a maconha e Ciro Gomes quando ele defendeu a penalização do usuário.

As militâncias de Lula, Marina e Ciro sempre conviveram pacificamente com discursos “cuidadosos” similares ao de Zanin. Os bate-bocas digitais estão cheios de antigos lustradores de idiossincrasias fazendo-se perplexos com as esquisitices alheias.

Mais alinhado a lideranças supostamente modernas do que à maioria do vetusto STF, Zanin personifica uma séria defasagem programática da esquerda institucional. Só que também exibe o fracasso (ou o desinteresse) de suas bases sociais em atualizá-la.

A inevitável judicialização de certos temas não substitui a luta política. Se o governismo participasse do consenso civilizatório do STF, teria uma resposta orgânica e imediata contra os ataques de senadores e prefeitos à descriminalização iniciada no tribunal.

Essas ameaças retrógradas seriam úteis para provocar o esboço de uma agenda mínima comum, representativa e suprapartidária, que definisse o básico do básico da ética progressista. A dificuldade de realizar algo tão simples é motivo de profunda reflexão.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

O golpe da tentativa



As investigações sobre as origens do “8 de janeiro” podem seguir duas linhas. A primeira, mais ortodoxa e confortável, reside em tratá-lo como evento único e irredutível: uma tentativa de golpe. Os indiciados seriam personagens que atuaram com o objetivo claro de interromper o governo Lula. Jair Bolsonaro e seus asseclas diretos protagonizam esse enredo.

A segunda abordagem começaria distinguindo as ilicitudes que geraram o vandalismo. De um lado, a tramoia golpista. De outro, a cumplicidade e a omissão de agentes públicos. Divididas as parcelas individuais de responsabilização, o ônus maior recairia sobre as pessoas que participaram de ambas as etapas, mantendo-as compatíveis com o resultado final da aventura.

Bolsonaro tem o perfil de quem acreditaria na sobrevivência de um governo gerado por uma sublevação militar. Seria fácil iludi-lo com essa bobagem, num teatro clandestino que explorasse as suas vaidades e seus limites cognitivos. Não surpreenderia descobrir que ele tinha de fato a ingênua esperança de que Lula viria a solicitar uma intervenção fardada.

Mas os organizadores dos ataques a Brasília não compartilhavam os planos de Bolsonaro. Sabemos disso porque Lula continuou presidente, algo que jamais ocorreria, naquele cenário, se o projeto golpista recebesse um mínimo de apoio dos comandos militares. E foi decisão tomada com antecedência, para evitar improvisos ou surtos de rebeldia das tropas.

O entorno bolsonarista seria incapaz de orientar evento de tamanha complexidade. Não me refiro apenas à mobilização de milhares de bandoleiros, mas também, principalmente, ao delicado equilíbrio imposto pelo propósito de liberar a destruição sem que ela resultasse numa tragédia ou num sequestro efetivo das instâncias governamentais.

Não culminando em ruptura, sequer efêmera ou iminente, os ataques expuseram a vigência de um controle mais amplo, necessário para antecipar e garantir a facilidade da ocupação e o recuo “pacífico” depois da baderna. Tudo isso envolve altas patentes, pois demanda centralização operacional, superioridade hierárquica e acesso privilegiado a informações.

No entanto, apesar das evidências, cozinha-se uma anistia velada para os mentores da conspiração vitoriosa, aquela que chamamos de “8 de janeiro”. Com endosso da mídia, o desfecho do caso pende para o caminho fácil, de usar bolsonaristas como bodes expiatórios. Surgem até ensaios de glorificação dos militares por terem supostamente abortado o tal golpe.

Não, as Forças Armadas não salvaram a democracia. Na melhor das hipóteses, negaram-se a protegê-la. Na pior delas, atiçaram bandidos para desestabilizar e acuar um governo legítimo. Talvez seja impossível distinguir juridicamente essas atitudes, mas com certeza quem devia obedecer obedeceu e quem podia mandar mandou. Não houve falha ou insubordinação.

A narrativa da “intentona” é uma receita de pizza. Com muita sorte, atinge Bolsonaro e meia dúzia de assistentes, livrando a poderosa estrutura militar que os manipulou. Reduz o “8 de janeiro” a um gigantesco mal-entendido, onde milhares de lunáticos teriam acreditado nas promessas, nos blefes e nas apostas furadas que, para estupefação geral, ninguém fez.

Depois de negarem os golpes que realmente ocorreram, os conciliadores se escandalizam com uma tentativa frustrada. Ela deve ser punida, claro, mas seu modelo obsoleto e inviável de ruptura não explica o sucesso dos ataques em Brasília. Tampouco reflete a verdadeira ameaça fascista que borbulha nos bastidores institucionais. Naturalizá-la é uma forma de capitulação.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Dez anos em junho



Cada pessoa que vivenciou os protestos de junho de 2013 define-os à sua maneira. São milhões de análises baseadas em experiências individuais distintas. Todas válidas como testemunho, mas não necessariamente como juízos históricos sobre o período.

As opiniões mais positivas tendem a vir dos partícipes mais engajados, muito jovens na época, talvez em sua primeira grande aventura politizada. Hoje o saudosismo inevitável modula a autoimagem heroica e pioneira que eles projetam nos eventos.

As lembranças pouco elogiosas vêm da militância antiga, calejada com as expectativas e frustrações de episódios similares, como as Diretas Já. Exageros conspiratórios à parte, os céticos de 2013 gozam a vantagem de não terem anunciado um futuro promissor.

Estive entre os que alertaram desde cedo para a falta de agendas claras em movimentos daquele porte. Víamos na iconoclastia antipolítica difusa um catalisador de anseios que poderiam confluir no repúdio indiscriminado ao sistema democrático. Dito e feito.

É fácil provar que a expansão das passeatas logo exibiu os símbolos e discursos que a direita usaria contra Dilma e a favor de Bolsonaro. Mas fazia parte do jogo. A natureza performativa de “ir à rua” servia justamente para liberar todas as demandas represadas.

Pois também o fascismo nasce do desejo de representatividade, do ódio à classe política e de um impulso gregário emancipador. Esses fatores não igualam nem distinguem os pendores ideológicos dos manifestantes. Na verdade, não explicam muita coisa.

Reconhecendo a complexidade do ânimo insurrecional de 2013, evitamos idealizá-lo. É arriscado celebrar rebeldias espontâneas no âmbito das redes digitais. E a identificação majoritária dos atos como “de esquerda” simplifica os inúmeros contextos envolvidos.

Esses esforços de legitimação, porque a rigor desnecessários, transbordam os paradoxos que tentam ocultar. Se o antipetismo não fosse influente nas reivindicações, ninguém usaria o álibi autonomista para criticar, em retrospecto, a falta de tutela do PT.

É bobagem responsabilizar os protestos pelos golpes seguintes. Ainda que não tenha gerado a cruzada lavajatista, porém, a revolta forneceu-lhe pretextos oportunos, tanto no perigo revolucionário a ser contido quanto na popularidade da bandeira anticorrupção.

Ambas as desculpas, convenhamos, traduziam o imaginário de 2013. Acentuando seu voluntarismo cívico e ampliando o escopo dos inimigos, os fascistas completaram o ciclo vicioso de apropriações: sim, morta a democracia, outro mundo era possível.

Então os rebeldes progressistas de outrora despertaram para o viés nefasto da obsessão moral, do vandalismo, da loucura patriótica. E, no avesso do sonho, correram em busca de seus antigos vilões para ressuscitar aqueles tempos saudosos de normalidade política.

A utopia dos “levantes de junho” envelheceu mal.

terça-feira, 16 de maio de 2023

O ótimo e os inimigos do bom



As dificuldades do PL 2630 nasceram do esforço para agregar um arco excessivo de interesses corporativistas, que teoricamente facilitariam sua aprovação. Abrindo muitas frentes de diálogo, o projeto se afastou do consenso desejado. Terminou incapaz de atender às demandas geradas pela desnecessária complexidade que o sufoca.

Entendo que Orlando Silva tenha seguido o apanágio pragmático “o ótimo é inimigo do bom”. Uma lei permissiva, ou pontualmente vaga, seria melhor do que lei nenhuma. De fato, em especial na urgência deste caso. Mas há um limite a partir do qual a concessão vira derrota e o acordo passa a causar mais estragos do que benefícios.

A imunidade a parlamentares e manifestações supostamente religiosas é desses absurdos que tornam preferível o abandono da proposta. O resultado equivale a permitir discursos golpistas, homofóbicos, racistas e xenófobos, desde que fantasiados de opinativos ou partidários. No cenário ruim atual, pelo menos existe a chance de eventual punição.

Por outro lado, não é razoável criticar a “autorregulamentação compulsória” prevista na lei. Embora imprescindível, um órgão regulador jamais daria conta do varejo das denúncias cotidianas, que a direita calhorda tratará de multiplicar. Só as plataformas têm recursos técnicos e humanos para esse controle. E, a rigor, trata-se de ônus operacional que cabe às empresas, não aos contribuintes. Basta seguirem critérios preestabelecidos.

Insisto nesse aspecto fundamental: as plataformas não podem exercer arbítrio censório. Devem seguir apenas as leis vigentes, liberando o que não for expressamente proibido, adotando compensações proporcionais aos danos, identificando e banindo criminosos. Manifestação pública não obedece a “políticas internas”, e sim à constitucionalidade.

A ociosa referência às fake news atola o debate em definições de “verdade”, “mentira” e “erro”, depois envolve as de “golpe”, “fascismo” e “genocídio”, até que o impasse vire espelho das refregas digitais. Essa plataformização do ambiente legitima interlocutores nefandos, encabeçados pela seleta casta dos evangélicos que leem George Orwell.

A liberdade de expressão funciona para os oportunistas como criptografias e algoritmos para os monopólios digitais. Não por acaso, ambos os grupos apelam à autovitimização e exploram a hipossuficiência técnica dos usuários para convencê-los de que são livres nas redes sociais e, pior, de que têm o “direito” de espalhar falácias e agressões.

Abordando os disparos massivos nos aplicativos de mensagens, o uso de informações pessoais e o enquadramento das redes nos Códigos Penal, Civil e do Consumidor, com normas claras, simples e fiscalizáveis, a proposta já avançaria muito. Exigir que ela remende todos os defeitos da pós-democracia é uma maneira de inviabilizá-la. E não faltam vozes que defendem a regulamentação “ótima” porque adivinham o seu fracasso.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Falta identificar os conspiradores



Quem acredita que os ataques de oito de janeiro fracassaram precisa recalibrar seu otimismo. Não houve “tentativa” alguma em Brasília. A ideia de que o governo impediu um golpe distorce os acontecimentos para além do que autoriza a prudência estratégica.

Os democratas se acostumaram a interpretar o episódio pelas possibilidades que ele não efetivou. Mas ninguém sabe se os ataques foram planejados para realmente derrubar Lula. Tinham caráter golpista, sem dúvida, mas sua finalidade imediata segue duvidosa.

Os militares não precisariam do vandalismo alheio para assumir o poder. Alegando a mera iminência de distúrbios, com apoio da PM e de uma companhia de soldados, tomariam o Planalto, o Congresso, o STF e o TSE, até que a ruptura ficasse irreversível.

A escolha de um domingo, em pleno recesso parlamentar e judiciário, facilitou o êxito “territorial” dos ataques, mas também anulou o sentido pragmático da bandeira golpista. Uma instituição depredada, sem funcionários, é apenas um amontoado de escombros.

Ao mesmo tempo, as ações das cúpulas militares, das autoridades civis e dos líderes dos baderneiros foram coordenadas. É ingênuo ver nos comandantes uma hesitação perplexa ou resistente a demandas externas. Aquilo não aconteceria sem roteiro preestabelecido.

Só um controle bem feito explica a relativa modéstia dos danos, especialmente aqueles que poderiam atingir os próprios bandidos. Deixada ao sabor do acaso e dos humores, a balbúrdia levaria a explosões e incêndios de grande porte, decerto com vítimas.

Superando a fantasia do levante espontâneo e imprevisto, percebemos que o ataque se define pelo que de fato realizou, não pelo desejo manipulado dos executores. Em outras palavras, que os objetivos da ação transparecem nos seus efeitos palpáveis.

Primeiro: ofuscar a simbologia positiva da posse de Lula. A inevitável cobertura midiática virou uma propaganda fascista de alcance planetário. Algo se quebrou no otimismo democrático do novo governo e até na imagem vitoriosa do presidente.

Segundo: substituir a derrota eleitoral do bolsonarismo por um triunfo performático de sua militância. O codinome “festa” resume o viés exibicionista e intransitivo do evento. A catarse rebelde preveniu o melancólico abandono das vigílias salvacionistas.

Por fim, o “triz” que faltou para o dito golpe dificulta a recomposição da normalidade. Recurso terrorista usual, o perigo iminente gera medo, paranoia e conflito interno. O desfecho ambíguo, fantasiado de retorno à ordem, fez o governo refém de seus algozes.

Em suma, o delírio golpista do suspeito é inversamente proporcional à sua culpa efetiva pelo 8 de janeiro. Num paradoxo cruel, quanto mais os democratas se aproximarem dos verdadeiros mentores do ataque, maior será o êxito do projeto desestabilizador inicial.

A CPMI não alimentará a crise militar, mas pode expor suas dimensões. Resta saber se o governismo tem vontade e força política para admiti-las. Pois, uma vez aberto o baú de assombrações, essa briga exigirá muito mais do que manifestos democráticos.