sexta-feira, 12 de julho de 2024

A questão evangélica



“A esquerda precisa dialogar com os evangélicos”. Essa frase, muito repetida, permite várias leituras. No sentido literal, gregário e educativo, é irrefutável. Mas não vai além da constatação meio acaciana de uma necessidade inerente à rotina política.

Em termos pragmáticos, ligados à formulação de agendas comuns, a ideia é eficaz apenas se envolver representantes de igrejas, governos e partidos. Seria impossível chegar a consensos amplos com as numerosas, variadas e dispersas bases de fiéis.

Mas a proposta dialógica leva a raciocínio unilateral: não cobra dos líderes evangélicos que tomem a iniciativa ou se exponham a princípios diferentes dos seus. No fundo, a ideia exige concessões do campo progressista. Que não pode e não deve fazê-las.

Primeiro, porque o resultado seria um programa conservador. Apesar de heterogêneo, o pluriverso evangélico tem viés ideológico predominante, com vastos setores inflexíveis. E o meio-termo entre a esquerda possível e a extrema direita fica longe do centro.

Segundo, porque as cúpulas evangélicas são alinhadas a interesses políticos que se definem pelo antagonismo com o campo progressista. Uma incompatibilidade, quase sempre ostensiva, que serve como ferramenta de persuasão dogmática e partidária.

Lula tentou seduzir os fiéis com discursos conservadores e anuência a certos regressos legislativos. As bancadas radicais, inclusive as religiosas, usaram suas pautas pré-históricas para exorbitar o custo civilizatório da aproximação. Ou seja, para sabotá-la.

Esse desejo de polarização amiúde resulta num confronto aberto com os setores laicos. Então a performance indecorosa serve como atentado simbólico ao imaginário secular e, nos casos mais agressivos, como propaganda insurrecional de bandeiras teocráticas.

Minando a pacificação da sociedade, aliando-se a projetos totalitários de poder e divulgando estereótipos negativos contra valores da cidadania, as lideranças evangélicas criaram um problema institucional. O varejo da militância política não irá solucioná-lo.

Organismos sociais e partidos progressistas têm direito e obrigação ética de constranger o STF a redefinir os limites da atividade político-religiosa. Começando pelos ilícitos mais antigos e salientes, romperiam a blindagem legal e discursiva do abuso dogmático.

Propaganda eleitoral em espaços de culto, proselitismo religioso em repartição pública e candidatura com título clerical são exemplos de violações ao princípio constitucional da laicidade do Estado. Ultrapassam as liberdades de expressão e de exercício da fé.

Só há separação de duas instâncias quando ambas renunciam ao contato. Um Estado que permite influência religiosa em seus procedimentos não é laico. Igrejas que desfrutam de direitos absolutos servem de abrigo para a apologia impune do fascismo.

Nada disso envolve as intenções e os valores das bases evangélicas. O receio de afrontá-las é pueril. Não esqueçamos que a resistência progressista à imposição das pautas de “costumes” foi simultânea à melhora na popularidade do governo federal.

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