segunda-feira, 26 de março de 2012

Quem precisa dos conselhos?



Publicado no Amálgama
(tela "Os síndicos do grêmio de tecidos", 1662, de Rembrandt van Rijn)

Os conselhos profissionais são herdeiros distantes das guildas da Idade Média, oficinas que reuniam aprendizes e mestres para desenvolver técnicas e proteger interesses comuns. Ao longo dos séculos, as lojas corporativas transformaram-se em centros de influência política, tendo papel relevante na consolidação dos Estados modernos, nas lutas pela autonomia das colônias e nos movimentos republicanos.

Ao contrário dos sindicatos laborais, portanto, esses órgãos desfrutam de longeva e arraigada presença nas altas esferas do poder. Fortalecidos pelas ricas estruturas das corporações, seus representantes nos Legislativos construíram uma sólida base jurídica, amiúde com raízes constitucionais, que lhes garantiu privilégios eternos. No Brasil, apesar das liberdades consagradas aos ofícios remunerados, sua própria regulamentação foi submetida aos escritórios disciplinadores.

Autarquias independentes, monopólios arrecadadores em pleno capitalismo liberal, desfrutam os melhores privilégios das esferas pública e privada. Por um lado, amealham fortunas respeitáveis com as taxas impostas aos afiliados. Por outro, estão imunes aos princípios de transparência, publicidade e escrutínio que fundamentam as instâncias governamentais. Ou seja, arrecadam uma espécie de tributo, que, no entanto, se transforma em dividendo particular (algo muito parecido ocorre no multibilionário Sistema $).

Os profissionais recebem lá suas vantagens. Graças ao lobby protecionista, há leis exigindo que toda empresa do país adquira determinados serviços regularmente. Não importam as necessidades ou o tamanho da firma, os conhecimentos ou a experiência dos empregados e diretores: algumas triviais palavras inseridas no contrato social acarretam o ônus de arcar com honorários de pessoas eventualmente substituíveis. Desnecessário reforçar que a obrigatoriedade favorece os grandes empreendimentos, pois uma oferta numerosa dilui esses custos operacionais, acarretando preços mais baixos que os de concorrentes menores. Também estimula diversas irregularidades, ao trivializar o aluguel de rubricas e a distribuição de falsas garantias técnicas.

Não se trata de questionar competências genéricas, tampouco a óbvia necessidade da mão-de-obra especializada para funções que envolvem sérios riscos a terceiros. Acontece que na maioria dos casos esses riscos inexistem. As assinaturas de bacharéis em contabilidade ou em administração, por exemplo, são meros instrumentos coercitivos de prevenção a fraudes que o Fisco, a Previdência e o Judiciário podem coibir sozinhos, com os meios disponíveis. Aliás, tais endossos contribuem pouco para responsabilizar os verdadeiros malfeitores ou para sanar os prejuízos por eles causados.

O pretexto do bem coletivo serve apenas para que os escritórios afaguem seus associados e, claro, abocanhem as taxas compulsórias das empresas (sim, elas pagam também). A contrapartida “social” das guildas é perseguir inadimplentes e uns poucos falsários que alcançam notoriedade midiática. Iludidos com o troco fácil, os diplomados esquecem que boa parte dos seus benefícios retorna aos bolsos dos tutores, e assim deixam de contestar a natureza perniciosa do escambo. Mas uma questão permanece: por que o exercício profissional deve ser condicionado ao pagamento de anuidades?

A hegemonia dos conselhos é preocupante, pois realiza a silenciosa privatização dos deveres constitucionais do Estado e, com a nova Lei da Ficha Limpa, atinge até mesmo o desenvolvimento do processo eleitoral brasileiro. Eles furtam atribuições do Poder Executivo e do Ministério Público, enfraquecendo-os ainda mais e cobrando caro para atingir resultados igualmente pífios. Nem poderia ser diferente, já que se alimentam do vácuo institucional e não possuem recursos jurídicos, estruturais ou representativos para saná-lo. Os próprios fiscalizadores beneficiam-se dos problemas que afirmam combater. Às nossas custas.

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