domingo, 30 de março de 2008

A responsabilidade pela cratera

Em bom artigo publicado hoje na Folha (num esconderijo do caderno Cotidiano), o geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos critica a tentativa de conferir ao desabamento do metrô paulista uma aura de fatalidade natural. De fato, a grande imprensa (Folha, principalmente) quase ignorou o parecer técnico do Ministério Público Estadual, que apontou falhas nas obras, mas concedeu grande destaque a um laudo encomendado pelo próprio consórcio responsável pela construção, isentando-o de responsabilidades. Desnecessário lembrar que culpa "natural" é culpa difusa, "de ninguém", levando à absolvição completa do governo Serra e das empresas contratadas por ele para realizar a obra.
Incluo o artigo abaixo, para disponibilizá-lo também aos não-assinantes.

Acidentes: é um erro perigoso culpar a natureza

Quando do acidente da estação Pinheiros da linha 4 do metrô paulista, divulguei artigo dentro dessa mesma temática. Hoje, com o início da divulgação dos laudos encomendados para o diagnóstico do referido acidente, sinto-me obrigado a voltar ao tema. E, da mesma maneira, não me move a intenção de acusar ou julgar nenhuma das partes envolvidas, ou sequer contrapor-me a qualquer opinião publicada sobre as causas do acidente. Move-me apenas a intenção de esclarecer o papel e resguardar a imagem da geologia e da engenharia brasileiras, como também colaborar para que esse, como os demais acidentes, ao menos cumpram sua intrínseca função histórica de proporcionar o avanço dos conhecimentos técnicos e gerenciais relacionados a empreendimentos de engenharia.
O que ocorre de êxito ou fracasso em uma obra de engenharia está intimamente associado à ação humana. Não é correto que se debite comodamente a fatores da natureza ou a deuses e demônios responsabilidades que são intrinsecamente humanas. Esse cacoete de se lançar a responsabilidade por um problema mais sério a imprevistos geológicos ou pluviométricos é, em sua essência, desprestigioso com os profissionais da engenharia brasileira.
Frente à insistente repetição dessas fáceis e comuns explicações, questiona naturalmente a sociedade: "Mas, afinal, para que servem então engenheiros, geólogos e arquitetos, se uma obra é assim tão vulnerável a esses tais imprevistos geológicos ou pluviométricos? Onde raios eles estavam que não perceberam isso?". Mais, satisfazer-se em culpar a natureza e não identificar as verdadeiras causas de um acidente constitui um ato conivente com a real possibilidade de ocorrência de novos acidentes similares.
Obviamente há casos, a cada dia mais raros, em que possam surgir fatos geológicos e geotécnicos novos, especialmente quanto a comportamentos ainda desconhecidos ou pouco conhecidos de certas feições ou materiais geológicos. No entanto, com a experiência acumulada no conhecimento geológico-geotécnico proporcionado pela implantação de seguidos e diferenciados empreendimentos, no Brasil e no mundo, e especialmente em regiões geológica e geotecnicamente já bastante conhecidas e mais intensamente afetadas por empreendimentos, como é o caso da região metropolitana de São Paulo, essa possibilidade tende exatamente a zero. Por fim, não poderemos erroneamente caracterizar como um imprevisto geológico uma feição geológica que poderia e deveria ter sido detectada preliminarmente ou no andamento da própria obra e não o foi, por alguma deficiência de procedimentos e investigações.
Na engenharia, há uma regra inexorável: se houve acidente, houve uma falha. Essa falha pode ser de diversas ordens: erros nas investigações e informações técnicas (dados de entrada) para o projeto, erros de projeto, erros no plano de obra, falhas nos processos construtivos, deficiência em materiais empregados... A redução da margem de ocorrência de erros é uma meta que a boa engenharia persegue com obstinação dentro de uma verdadeira cultura e procedimentos de segurança. E, ao lado de uma provada competência dos técnicos envolvidos, o maior instrumento para essa redução está em um eficiente e onipresente plano de gestão técnica do empreendimento, desde a fase dos estudos preliminares até a entrega da obra acabada e seu futuro plano permanente de monitoramento técnico.
No caso da geologia, até a probabilidade de se encontrar durante o andamento da obra alguma feição particular não anteriormente detectada deve, obrigatoriamente, ser considerada nos cuidados do plano de obra e dos processos construtivos, que, para tanto, devem sempre ser acompanhados por um consistente programa de monitoramento e investigação geológica complementar.
Sempre lembrando que a frente de obra constitui a oportunidade mais espetacular e propícia para a confirmação ou não dos levantamentos anteriores, como para investigações complementares que se mostrem convenientes.
Ou seja, em defesa dos profissionais brasileiros em hidrologia, hidrogeologia, geologia e geotecnia, que colocaram o país em nível internacional de competência nessas áreas, e em defesa dos interesses maiores da sociedade brasileira, apelamos às autoridades públicas e privadas. Autoridades relacionadas a qualquer tipo de acidente em obras de engenharia que não capitulem diante dos impulsos naturais em buscar explicações e justificativas que lhes eximam de alguma responsabilidade e tenham a disposição de colocar em questão também fatores não diretamente técnicos, investigando criteriosamente o plano de gestão dos empreendimentos afetados.
Por certo, a eventual contaminação e comprometimento de um ambiente de obra por um clima de trabalho antagônico ao prevalecimento da cultura da segurança e da boa técnica, como ocorre nas frentes de obra que buscam compulsivamente a aceleração de prazos de entrega e/ou a redução de custos, promove temerariamente a possibilidade de ocorrência de falhas ou descuidos.
É interessante investigar também as conseqüências técnicas de um eventual excesso de terceirizações dos mais variados tipos de serviço de engenharia. A partir de um determinado ponto, um excesso de terceirizações não comprometeria a gestão da qualidade global do empreendimento? É muito provável que aí estejam as deixas para entender melhor os acidentes que vêm ocorrendo com alguma freqüência em empreendimentos brasileiros de engenharia e, por dedução, para se evitar novos acidentes.

ÁLVARO RODRIGUES DOS SANTOS é geólogo e ex-diretor de Planejamento e Gestão do IPT

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