O episódio ainda precisa ser esclarecido. Por enquanto, parece incontroverso que militares colombianos invadiram o Equador e chacinaram um grupo de guerrilheiros das Farc. Circulam fotos de cadáveres vestidos apenas com roupas íntimas e marcas de tiros nas costas. Venezuela e Equador mobilizaram tropas. O processo de negociação para soltura de reféns sofreu um abalo talvez irrecuperável.
O governo colombiano acusa Chávez de financiar a guerrilha, mas há muitas incongruências nas versões oficiais. A quantia (US$ 300 milhões) é exagerada para uma insurgência metida na selva, mal acomodada em casebres improvisados, utilizando armamentos antigos. E também é dinheiro demais para movimentar clandestinamente, em vilarejos rurais. A existência de registros desse pagamento nos computadores do líder Raúl Reyes soa ingênua para combatentes com a sua experiência. Também suscita indagações a própria utilização de tecnologia rastreável, dependente de fontes de energia e sujeita a danos previsíveis nas duras condições do confinamento.
O presidente colombiano, Álvaro Uribe, reelegeu-se com o discurso de dizimar a guerrilha. Conseguiu apenas fortalecê-la. Seu governo foi acusado de envolvimento com grupos paramilitares de extrema direita, controlados por narcotraficantes, mas conseguiu abafar o escândalo, suficiente para derrubar qualquer administração democrática. Os EUA protegem-no, pois necessitam de um “protetorado” para contrabalançar os governos de esquerda latino-americanos.
A sobrevivência política de Uribe, como a de George W. Bush no primeiro mandato, depende da guerra. O arrefecimento do combate significaria, para seu projeto político, uma confirmação de derrota. O colombiano sempre tomou iniciativas unilaterais para impedir negociações com a guerrilha. Recentemente, isolado pela hábil estratégia de Chávez, viu-se obrigado a ceder às pressões internacionais ou radicalizar sua posição. Escolheu a segunda alternativa, colocando em sério risco as vidas dos reféns (há quem diga que são em número muitíssimo maior do que oficialmente divulgado).
Talvez ele não tenha como corresponder às exigências das Farcs. Os guerrilheiros presos certamente passaram por torturas e maus tratos. Muitos provavelmente já morreram, sob a custódia do Estado colombiano (em prisões, não nos cativeiros da selva). Pega mal exibir mutilados, especialmente se ainda possuem condição de denunciar seus algozes. O mais revoltante é saber que a soltura de algumas dezenas de combatentes alquebrados não significaria qualquer fortalecimento para a capacidade militar das Farc. Eles estão fisicamente fora de combate, podem ser vigiados (portanto não retornariam à selva) e até confinados em regimes especiais. Bastaria um pouco de inteligência, mas Uribe, que é inteligente, não quer a paz.
Dizer que a diplomacia brasileira deveria intervir para mediar o conflito é apenas parcialmente correto. O Brasil precisa agir para impor-se como potência regional, preservando fronteiras e o equilíbrio estratégico dos países fronteiriços. Mas não pode se deixar absorver pelo confronto ideológico, pois a armadilha da identificação com a violência das Farcs (e com o “terrorismo”) é utilizada pela grande imprensa nacional para vilanizar todos aqueles que já procuraram alguma saída negociada para o impasse.
A tragédia da guerra civil colombiana é humanitária, e como tal deve ser tratada pelos organismos internacionais e governos estrangeiros. Uribe poderia, se quisesse, salvar dezenas de inocentes que fatalmente morrerão, por doenças ou execuções, graças à sua intransigência. Prefere ser cúmplice de assassinato a agir com um mínimo de decência e grandeza histórica.
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