Publicado no Correio Caros Amigos de 21 de maio de 2008
Esperei um pouco para rever “Tropa de elite”, longe dos festejos pela premiação no Festival de Berlim. Gostei mais agora do que na época das polêmicas sobre o suposto caráter fascista do filme, que turvaram suas inegáveis qualidades técnicas e dramáticas e até seus defeitos pontuais. Mas continuo achando o prêmio incongruente, uma espécie de gesto de desagravo do júri presidido por Constantin Costa-Gavras, em reação às críticas negativas da imprensa estrangeira.
“Tropa” é demasiado ortodoxo para tamanha consagração. Seu esmero visual não sobressai na cinematografia recente, brasileira inclusive, devidamente instruída e aparelhada para reproduzir o padrão norte-americano. Seria mais justo com as dimensões da obra se o ator Wagner Moura e o fotógrafo Lula Carvalho ganhassem reconhecimentos pessoais, poupando Berlim de um possível equívoco histórico.
Mas Costa-Gavras sequer prestaria atenção em “Tropa” se visse nele apenas um policial inconseqüente, na linha “Dirty Harry in Rio”. O lendário cineasta, autor de tantos clássicos libertários, provavelmente interpretou o filme por suas declaradas boas intenções, isto é, como uma crua denúncia das instituições policiais.
As acusações de fascismo vieram a calhar para o diretor José Padilha, justamente porque são ridículas, invalidando questionamentos mais conseqüentes. A idéia da apologia no produto artístico não tem sentido sob vigência da liberdade de expressão. Retratar como protagonista um policial corrupto não faz da narrativa um elogio da corrupção. Há grande potencial conscientizador no choque da empatia sedutora contra o racionalmente inaceitável – daí advém a força de tantos anti-heróis inesquecíveis.
Já teci comentários semelhantes sobre o Jack Bauer de “24 horas”. O seriado não comete delito algum, nem o filme brasileiro. Mas, se vamos analisar os personagens, não cabem controvérsias: Bauer e o capitão Nascimento, como seus modelos reais, são criminosos agindo sob a tolerância cínica das autoridades e da sociedade. Assistir a prisões ilegais, torturas e execuções sumárias pode nos ajudar a compreender o funcionamento de um sistema corrompido que ajudamos a sustentar. Ouvir os argumentos desses bandidos nos induz a confrontar e discutir seu sistema de valores.
Portanto, nessa lógica da abordagem crítica, quando Nascimento defende que os usuários de drogas são co-responsáveis pelas mortes de inocentes, poderíamos concluir: eis a visão típica de um contraventor fardado, que reproduz os argumentos simplistas desse proibicionismo estúpido, arcaico e fracassado, do qual a própria polícia é instrumento. Na vida real, um soldado assassino, em sua brutalidade ilegítima, ignora a tendência mundial rumo à descriminalização da droga, ao abandono da legislação repressiva que leva à violência, à clandestinidade e à corrupção. Esse personagem, para ser crível, não poderia ter opinião diferente.
Mas “Tropa”, como todo filme de tese, evita abstrações, distanciamento e ambigüidades. Em vez de enfrentar a complexidade do tema, Padilha seleciona recortes convenientes e utiliza-os para comprovar um conjunto de argumentos pré-estabelecidos. E a couraça documental garante-lhe uma ilusão de infalibilidade (“conhecemos a verdade porque estivemos lá”), com tal pretensão de esgotar os debates que termina resvalando no mesmo autoritarismo de seus personagens.
A ótica do Bope, maniqueísta e simplificadora, está em toda parte: na supremacia dos soldados, nas motivações dos aspirantes, na alienação dos universitários, no menosprezo pelas teorias de Foucault (tomando a precaução de anular a maior objeção conceitual ao papel das polícias), na ridicularização das iniciativas assistenciais, na frieza cafajeste dos vilões. Não existem subtextos, lacunas ou silêncios; não sobrevivem dúvidas. Prevalece o didatismo das lições de moral, com castigo e tudo, no qual criador e criatura se amalgamam para gritar “Maconheiros filhos da puta!”.
A prova incontestável desse diagnóstico encontra-se num curto depoimento do diretor, escondido nos “extras” do DVD, quando ele defende a visão de Nascimento sobre a responsabilidade dos usuários pelo sustento do crime organizado. Em poucos segundos, somos tomados por uma descoberta estarrecedora: as idéias do personagem reproduzem um ponto-de-vista autoral. Padilha utiliza os policiais para manifestar-se. “Tropa” se transformou, assim, numa peça de propaganda da teoria repressiva e dos fundamentos jurídicos da putrefação institucional que o filme aparentemente denuncia.
Quase fui enganado por Padilha, e por isso compreendo o logro de parte do público e da crítica. As prerrogativas de criador permitem-lhe defender o teor acrítico de sua obra, alegando tratar-se de uma reprodução da realidade em estado bruto. Leni Riefenstahl deu explicações semelhantes para seu “Triunfo da vontade”, que passou de elogio do nazismo a exercício estético num piscar de tolerância. Em ambos os casos, porém, o pendor ideológico repousa por trás do manto das aparências, revelando-se naquilo que elas deliberadamente escondem.
8 comentários:
Guilherme, sou sua leitora há sete anos na Caros. Gosto dos seus textos.
Gostei também deste artigo, mas confesso que me assustei no começo. Parecia que você seria mais um a defender o filme e, sendo da Caros Amigos, isso me deixaria ainda mais triste.
Acontece que li muitas barbaridades na internet à época da premiação, e antes também. E de gente da esquerda. Resolvi esquecer um pouco o assunto. Mas você voltou ao tema
com uma colocação interessante: de que a acusação de fascismo até ajudou Padilha a encobrir seu próprio autoritarismo, escondido numa suposta denúncia da "realidade". Tudo bem. Talvez as críticas, como foram feitas, tenham mesmo até ajudado o diretor. Mas por que você acha ridículo acusar o filme de fascista, se reconhece que o diretor "concorda" com o capitão? Se concorda que o filme é autoritário e não deixa margem pra discussão, e sim afirma uma verdade absoluta, incontestável, gerando um clima de medo? Era o que eu estava sentindo nos debates dos blogs. Estavam "policiando" quem estivesse "contra" o filme, tipo Bush: "ou estão comigo ou estão contra mim".
Isto não é decorrente de uma postura fascista? Ou o que seria então? Será que dá pra dizer que a arte se sobrepõe às pretensões políticas e ideológicas do filme? Não acredito. Portanto, acho legítimo acusar o filme de fascista. Porque seu diretor nunca me enganou. E não gostei do filme, pra mim é mais um "crime artístico" cometido contra nosso povo. Tudo depende da intenção do criador, não é? Poderia ser um filme de qualidade e com méritos, capaz de conscientizar. Poderia. Mas é preciso ver os fatos como são. A arte nunca foi a preocupação maior, é só pra enganar mesmo. É preciso estar atento aos patrocinadores do filme, por sinal, americanos. E aos valores gastos. A Carta Capital de 10/10/07 traz estas informações, você deve ter lido.
Me desculpe, não era nem minha intenção criar polêmica, e sim fazer apenas uma pergunta. Que coisa... De qualquer forma, obrigada e sucesso com o blog.
Guilherme, não concordo com sua opinião sobre a obra em questão não ser fascista. Mas nem por isso te considero uma pessoa "ridícula". Pelo contrário.
Agora, por favor, me diga então o que uma obra de arte deve conter para poder ser considerada fascista? Ser produzida em Hollywood e ter o Arnold Stallone como protagonista?
Para mim, Tropa de Elite é um filme fascista, mas não por intenção, mas sim por pura incompetência dos realizadores mesmo.
Olá Cibele, seu ótimo comentário suscita questões importantes. Parece-me que "fascista" é um adjetivo forte demais. Apesar da tendência à apologia da polícia, não consta que Padilha esteja defendendo seus crimes. Ele usa o filme como argumento da tese da responsabilização do usuário, que, apesar de absurda, está muito longe da inaceitável cartilha fascista. Nascimento é fascista, a PM é fascista, talvez até a legislação seja fascista. Mas quem os exibe não pode ser acusado de cumplicidade, senão a denúncia perderia o sentido (o próprio Costa-Gavras seria defensor de ditaduras e Hector Babenco, do massacre do Carandiru).
Também condeno a blindagem da mídia em torno do filme, usando seu prêmio como atestado de infalibilidade. Procurei tirar Padilha dessa cômoda vitrine. O problema é que ele soube se refugiar na retórica do camaleão: suas intenções variaram ao gosto das platéias. "É bom filme de ação? Isso mesmo, eu que fiz." "Ah, é filme-denúncia? Ôpa, mostrei o lado sujo das polícias, corajoso que sou." "Nascimento é o anti-herói brasileiro? Claro, claro, ele é mau". Então o diretor só teve boas intenções? Assim até eu.
Por fim, penso que a arte não se sobrepõe à política, mas muitas vezes ela não tem, nem precisa ter, qualquer conotação político-partidária. E a denúncia tampouco precisa ser esteticamente elaborada. Misturar os dois universos, porém, exige muita responsabilidade.
Participe sempre, ok?
Um abraço do
Guilherme
Oi André, não havia recebido seu comentário quando respondi à Cibele. Mas reitero o dito ali a respeito do "fascismo". Acredito que precisamos preservar certo rigor conceitual - e, neste caso, a terminologia faz diferença. Senão, corremos o risco de desgastar e trivializar o termo, enfraquecendo sua contundência.
Não repudio a priori nenhum tipo de entretenimento, por mais ofensivo que pareça. Continuo achando que é direito soberano do lunático fazer o filme que quiser e direito igual nosso assisti-lo ou não. O fã dos Stalloneggers não é necessariamente um brucutu espúrio. A grande armadilha do maniqueísmo hollywoodiano é transformar-nos em brucutus anti-brucutus. Há espaço para tudo e para todos, inclusive os que consideram José Padilha fascista.
Continuemos esse bom debate.
Um grande abraço do colega de blogues.
Guilherme, respeito a sua opinião, porém falo por mim mesmo. Eu fui uma das vítimas da tal "liberdade de expressão" que gente como Stallone enfia goela abaixo de jovens e crianças que não têm proteção contra a alta carga ideológica que seus filmes despejam. Demorei anos para me livrar de tudo aquilo, às custas de muito sofrimento.
Acho válido discutir se tinham ou não a intenção de provocar danos - até porque muitos desses "artistas" acreditam realmente nas besteiras que pregam - ou se existe ou não um limite para a liberdade de expressão.
Porém, não é por isso que vou deixar de considerá-los fascistas quando agem ou pregam como tais. Até porque, como diz o ditado popular, "de boas intenções o inferno está cheio"...
Se quiser ler mais sobre o que penso sobre Tropa de Elite, dá um pulo no meu blog que escrevi bastante sobre ele.
Saudações pontepretanas!
Olha, Guilherme, se entendi bem, você defende que a descriminalização da droga é uma possível saída para a resolução da situação retratada no filme. Na minha opinião, ao argumentar dessa forma você acaba aceitando o que o Capitão Nascimento diz. Afinal, o que está na raiz da sua maneira de argumentar, na do Capitão e também na do Padilha é que a droga é a causa da situação de violência. Daí a conclusão de que, se eliminarmos o tráfico, acaba a situação. Mas não acho que essa seja a raiz do problema. Se as drogas não fossem mais ilegais, não acho que os traficantes do morro iriam se tornar grandes empresários. Mas, supondo que eles se tornassem e que os rapazes que hoje traficam se transformassem em empregados desses empresários, em algum momento não seria mais possível absorver mão de obra. Se hoje o tráfico absorve mão de obra de uma maneira quase ilimitada, é porque a reposição é muito rápida, graças à turma do Capitão Nascimento, e às próprias guerras entre traficantes, que mata esses rapazes aos montes. E onde pararia toda a mão de obra marginalizada que não seria mais absorvida pelo tráfico? Naturalmente, afluiria para outras atividades ilegais, o que certamente aumentaria o número de seqüestros, assaltos a bancos etc. O que quero dizer é que a causa do problema é a marginalização, não o tráfico. O tráfico, sob esta óptica, estabelece um equilíbrio entre as periferias e o restante da cidade: mantém a explosão da violência longe da cidade, represando os marginalizados nas favelas. No fim das contas, a altíssimas taxas de homicídios servem no máximo para que essa bola de neve não role dos morros sobre a cidade. Nessa linha, o capitão é sim um joguete, mas é mais conseqüente que os universitários estudando Foucault, porque esses continuam alimentando a situação nos morros, mesmo provavelmente acreditando com o Padilha que as drogas estão na raiz do problema. Isso é uma grande virtude do filme, entre outras: ele é mais conseqüente que o próprio diretor.
Olá Fabrício, questão interessante, que abre um novo campo de discussão.
Não defendo a legalização generalizada de qualquer substância entorpecente, mas a descriminalização incondicional do usuário. A liberação específica da maconha apóia-se em sólidos argumentos históricos, culturais, medicinais e legislativos que não vem ao caso reproduzir.
É importante separar usuário de traficante, maconha de cocaína, consumo recreativo de vício – esses termos são misturados por conveniência da propaganda repressiva. A mídia utiliza a palavra “traficante” para caracterizar qualquer criminoso anônimo em operação nas periferias. Há muitas outras práticas criminosas envolvidas: pirataria, contrabando, roubo, prostituição infantil, seqüestros, assalto a banco, milícias, etc. Ou alguém realmente acredita que todos aqueles exércitos, com seus imensos arsenais, são pagos apenas pela venda de entorpecentes?
A descriminalização não conseguiria extinguir o crime organizado, mas contribuiria para enfraquecê-lo. Ela tiraria as polícias de um combate inútil, desnecessário e corruptor, forçando-as a enfrentar os verdadeiros crimes, aqueles que causam danos reais à coletividade.
Quando proibiram o álcool, surgiram máfias que vendiam álcool. Ninguém que quisesse beber deixou de fazê-lo. Suspenderam a proibição, mas criaram outra, que veio abrigar aquelas máfias, e as drogas substituíram o álcool na demonização governamental. Eis o contra-senso maior da repressão às drogas: é a proibição que gera a clandestinidade e a violência, não o inverso.
Você tem razão ao dizer que o tráfico absorve parte da população excluída, impedindo-a de ingressar em outras atividades ilegais ou até mesmo de disputar oportunidades no mercado. Mas não entendi se essa transferência lhe agrada. A mim, não. A droga tem menos a ver com a violência do que a fome e a exclusão. É a ilegalidade da droga, não a própria droga, que serve como ganha-pão para exércitos de desesperados. Governantes ineptos e elites cínicas defendem a manutenção desse comércio clandestino porque ele apazigua e entorpece o “inimigo”. Sem os mitos das "drogas" e do "tráfico", a socidade seria obrigada a digerir as origens sócio-econômicas da violência.
Minha visão, portanto, é totalmente oposta às do capitão Nascimento e de José Padilha.
Um abraço do
Guilherme Scalzilli
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