quarta-feira, 8 de julho de 2009

“Dicionário de pequenas solidões”

Recebo de Ronaldo Cagiano seu bom volume de contos, em edição mais do que esmerada (Língua Geral, 2006). Temática suburbana, personagens trágicos, linguagem direta e crua que adota o monólogo interior sem cair na caricatura. Cagiano topa o risco, por si só uma qualidade rara no escritor contemporâneo.

Fígaro
(trecho)

“Recebeu na cara o vento inaugural da manhã e olhou fixamente um céu distante e pavoroso e viu de novo a cidade, aquela paisagem difusa crescendo em suas retinas. Uma tristeza oceânica, o silêncio reverberando inquieto, cerimonioso. As imagens se sucedem: desconexas, saltitam e comicham, cascavilhando a memória em sua trajetória de insistência: mancomunando contra a sua resistência em rever o passado diante daquela sacada. Tudo parecia um emergir violento, como um estouro de búfalos, de um sono (de um sonho? não, porque a realidade era próspera, próxima demais para ser esquecida), mas naquele canto – quietude e angústia se misturando – ainda soavam as tesouras, os fregueses esperando a sua vez, o cheiro de álcool recém-passado nos rostos escanhoados, os braços agitados do velho pai com suas pernas cheias de varizes e sem hora para comer, as folhinhas velhas penduradas na parede, o antigo ventilador Eletromar colocado estrategicamente num canto a digerir os verões (...)”.

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