Recebo de Ronaldo Cagiano seu bom volume de contos, em edição mais do que esmerada (Língua Geral, 2006). Temática suburbana, personagens trágicos, linguagem direta e crua que adota o monólogo interior sem cair na caricatura. Cagiano topa o risco, por si só uma qualidade rara no escritor contemporâneo.
Fígaro
(trecho)
“Recebeu na cara o vento inaugural da manhã e olhou fixamente um céu distante e pavoroso e viu de novo a cidade, aquela paisagem difusa crescendo em suas retinas. Uma tristeza oceânica, o silêncio reverberando inquieto, cerimonioso. As imagens se sucedem: desconexas, saltitam e comicham, cascavilhando a memória em sua trajetória de insistência: mancomunando contra a sua resistência em rever o passado diante daquela sacada. Tudo parecia um emergir violento, como um estouro de búfalos, de um sono (de um sonho? não, porque a realidade era próspera, próxima demais para ser esquecida), mas naquele canto – quietude e angústia se misturando – ainda soavam as tesouras, os fregueses esperando a sua vez, o cheiro de álcool recém-passado nos rostos escanhoados, os braços agitados do velho pai com suas pernas cheias de varizes e sem hora para comer, as folhinhas velhas penduradas na parede, o antigo ventilador Eletromar colocado estrategicamente num canto a digerir os verões (...)”.
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