sexta-feira, 20 de julho de 2012

“Na estrada”























As referências beat nortearam minha formação literária de maneira mais intensa e duradoura do que as da contracultura hippie, sua herdeira imediata, que encantava boa parte da juventude da época. Éramos demasiados boêmios, iconoclastas, agressivos e pessimistas para as utopias do pacifismo cabeludo, e por isso, instintivamente, preferíamos nortear nossos devaneios experimentalistas e libertários pelas figuras quase místicas de Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs. E Bob Dylan, sempre.

O legado do universo beat é inestimável. Os repertórios musicais, visuais, literários e até mesmo filosóficos da chamada pós-modernidade possuem ramificações que levam diretamente àquele espírito. Se não podemos simplificá-lo em fórmulas estéticas homogeneizantes, porém, é um erro grotesco negar sua influência a partir do repúdio ao individualismo (como faz a esquerda mais bitolada) ou desses purismos formais que a crítica conservadora usa para se proteger das incertezas cotidianas.

Não era pequena, portanto, a responsabilidade que Walter Salles assumiu ao transpor a notória saga de Kerouac. E o diretor soube resolver dignamente quase todos os desafios inevitáveis do projeto. Muniu-se de um elenco inspirado, apesar da juventude e da complexidade dos papéis, com destaque para Garrett Hedlund (Dean Moriarty/Neal Cassady), Tom Sturridge (Carlo Marx/Ginsberg), Viggo Mortensen (Old Bull Lee/Burroughs) e Elisabeth Moss (Galatea Dunkel/Helen Hinkle). A fotografia de Eric Gautier explora bem as paisagens inóspitas e se movimenta com desenvoltura nos interiores dos veículos, tão difíceis de filmar. A direção de arte é excelente e a trilha sonora de Gustavo Santaolalla harmoniza-se com o privilegiado fundo musical da época.

Há problemas na adaptação. O roteirista Jose Rivera optou por uma estrutura demasiado convencional, mais preocupada em esmiuçar a cronologia dos relatos (mantendo fidelidade à biografia dos envolvidos) do que em reproduzir o turbilhão episódico da narrativa original. Esse tratamento intermediário prejudica a identificação do espectador com os personagens e arrasta o desenvolvimento da trama, impondo-lhe uma falsa divisão de atos e anunciando conflitos e rupturas que não se realizam. Trata-se de uma expectativa desnecessária, pois Salles costuma utilizar um tempo narrativo muito característico, dado à contemplação e às pausas reflexivas, realçadas aqui (e em diversos momentos de sua obra) na clara homenagem a Wim Wenders, outro apaixonado pelos relatos de viagem.

É um trabalho bonito, provocativo, relevante sob diversos aspectos. Maior audácia formal e menos reverência histórica o transformariam no filmaço que o tema exigia. Mas talvez fosse muita transgressão para os padrões e costumes hollywoodianos.

Um comentário:

André Lux disse...

Filmes: "Na Estrada"

REBELDES SEM CAUSA

Sair por aí se drogando, roubando lojas, gerando filhos de maneira inconsequente e vivendo na imundice para depois escrever sobre essas experiências passa longe do meu ideal de “revolução”.

- por André Lux, crítico-spam

Dizem que a geração beatnik “mudou o mundo” e o comportamento das pessoas gerando uma legião de apreciadores de seu estilo de escrever. Pode até ser, mas para mim não passava de um monte de moleques sem eira nem beira que passou a maior parte da juventude fumando maconha, bebendo álcool e usando outras drogas pesadas enquanto viajavam de um lugar para outro sem qualquer motivo ou razão de ser e transavam entre si sem maiores consequências.

Pelo menos é isso que nos ensina essa adaptação de “Na Estrada” do papa do movimento beatnik Jack Kerouac, que morreu aos 47 anos de cirrose decorrente de seu alcoolismo. O brasileiro Walter Salles filma tudo com grande respeito à obra e quer nos convencer que aqueles garotos sem rumo e drogados seriam uma espécie de “oráculos da nova era”, todavia tudo que produziram depois nada mais foi do que narrar suas próprias desventuras recheadas de drogas e imundice (toda vez que alguém começa a se beijar no filme vem logo uma pergunta à mente: “quando será que foi a última vez que eles escovaram os dentes?”).

Não tenho nada contra a experimentação ou mesmo a rebeldia, desde que tenha alguma causa. Mas não é o que se vê aqui, onde todos podem ser descritos como meros rebeldes sem causa. Muita gente vai querer defendê-los dizendo que lutavam contra o sistema, mas isso é balela. Pelo menos no filme em questão não há qualquer discussão ou debate sobre isso e os personagens passam o tempo inebriados pela fumaça de seus cigarros de maconha e pelos delírios literários autoindulgentes, enquanto rumam velozmente para a autodestruição.

Ao assistir “Na Estrada” veio a mente a comparação com “Diários de Motocicleta”, o outro filme de Salles sobre uma viagem, onde acompanhamos o jovem Che Guevara conhecendo a américa latina junto com seu amigo Alberto Granado. Mas a comparação é ridícula. Enquanto em “Diários” acompanhamos o amadurecimento do protagonista decorrente das experiências e encontros que absorve durante a viagem, fato que o ajudou a se tornar um dos maiores ícones da luta contra o sistema no mundo, em “Na Estrada” observamos entediados um bando de jovens autodestrutivos perambulando de um local para o outro sem eira nem beira e sem qualquer traço de amadurecimento ou mesmo aprendizado.

Numa das cenas mais repugnantes do filme, vemos Viggo Mortensen (no papel de Bull Lee, que seria o alter-ego do escritor beat William Burroughs) dormindo com o filho no colo depois de se injetar na veia com heroína ou coisa que o valha enquanto a esposa igualmente drogada sai correndo atrás de lagartixas no mato. É por isso que essa gente se considerava “contra o sistema”? E por falar em Burroughs, seu livro mais famoso “O Almoço Nu” também virou um filme nas mãos de David Cronenberg (aqui ridiculamente chamado de “Mistérios e Paixões”) e resultou num produto igualmente intragável e inútil.

Entendo que para muita gente esse mundo repleto de junkies autodestrutivos produz uma forte atração, porém obviamente não é o meu caso. Sair por aí se drogando, roubando lojas, gerando filhos de maneira inconsequente e vivendo na imundice para depois escrever sobre essas experiências passa longe do meu ideal de “revolução”.

Cotação: *