terça-feira, 26 de novembro de 2013

Tipicamente americanos
















Numa entrevista remota, Caetano Veloso criticou a expressão “estadunidense” como referência ao que é natural dos EUA. Muita gente considera a palavra pedante e até xenófoba. Seria preferível usar “americano”, de uso consagrado e assimilação imediata. Mas o problema ultrapassa o âmbito vocabular.

Nas suas mais antigas aparições, o topônimo América se referia a uma porção territorial do que seria depois o Nordeste brasileiro. O termo foi apropriado pelos articuladores da independência dos EUA, mais de duzentos anos depois, e serviu como base para o imaginário do Destino Manifesto, a missão civilizadora do país no continente. O lema “A América para os americanos”, que fundamentava as pretensões imperialistas da Doutrina Monroe (1823), consagrou a associação com viés inconfundível e duradouro.

Algum paralelo com outras nacionalidades realçaria quão presunçosa e artificial é a apropriação, mas ela não possui equivalentes modernos de uso disseminado – por exemplo, querer que “europeus” signifique especificamente os franceses ou “asiáticos” os chineses. Esses absurdos hipotéticos insinuam o alcance que a maleabilidade terminológica poderia atingir. Se tecnicidade geográfica de tal importância é dispensada como preciosismo desnecessário, não haveria motivo para respeitar a exatidão em qualquer caso.

Aliás, é curioso como os artífices da clareza politicamente correta sabem tolerar as generalizações que lhes convêm. Os chamados “povos nativos”, além deste cuidadoso rótulo genérico, são identificados pelos ramos étnico-lingüísticos que os distinguem do contexto populacional majoritário. Quando se trata de “americanos”, esse purismo desaparece, com um agravante: o direito à auto-designação de um povo anula o mesmo direito de outros povos.

Qual o sentido de negar a quase um bilhão de pessoas, nascidas em mais de 30 países, o direito de se identificar com o continente que habitam? Por que fingir que os EUA não compartilham as formações históricas e culturais de outras nações? Será pela vergonha de possuir as mesmas origens que alguns dos países mais pobres e explorados do planeta? Ou será por vergonha de toda análise geopolítica advinda do conhecimento da História desses povos?

E, principalmente, por que usar uma palavra com tamanha fragilidade semântica, e que serve à ilusão de superioridade e à afirmação de um nacionalismo embevecido por delírios agressivos de hegemonia?

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