Publicado no Le Monde Diplomatique Brasil
É fácil encontrar características do imaginário
black bloc em outras formas de ativismo, especialmente as que compartilham a
longeva herança anarquista. Mesmo as suas bases filosóficas mais recentes, cheias
de biopotências, devires e outros conceitos intricados, agradam a um variado
leque de opções militantes. Mas existe um diferencial poderoso no fenômeno black
bloc: o uso obsessivo da palavra “tática” para definir-se.
A princípio, essa alcunha poderia insinuar um
conceito instrumental da atitude rebelde, calcado na (enganadora) proposta de esvaziá-la
de sentidos intrínsecos. O problema é que, manejada como simples ferramenta, a
agressividade absorve a natureza dos objetivos aos quais se associa. Inclusive o espírito fascista, que costuma insinuar-se pelas fileiras anônimas de
manifestações abertas a qualquer plataforma.
Não há risco de contaminação reacionária na militância
mascarada, entretanto, pois ela sempre incorporou padrões reivindicatórios
claros, escolhendo as circunstâncias mais convenientes à defesa das bandeiras genéricas
(anticapitalismo, antiglobalização, etc) que lhe conferem uma identidade
coesiva. Soa ingênuo, portanto, concluir que a mera falta de líderes e regras
formais garante a autonomia e a descentralização dos seus adeptos. O
próprio esforço para fazer da destruição seletiva uma mensagem, ou uma
finalidade em si, descaracterizaria o suposto caráter espontâneo e intempestivo
do gesto.
O enquadramento ideológico, a coerência
programática e a dinâmica participativa demonstram que os blocos estão mais
próximos de uma organização política do que o rótulo “tático” permite adivinhar.
Têm afinidades, por exemplo, com as dissidências de esquerda que seguiram
metodologias diversas no combate à ditadura militar. Nem todos os grupos
armados achavam possível derrubar o regime, concentrando suas expectativas no
apelo provocativo que ações de impacto poderiam ter sobre a sociedade.
É sob essa ótica organizacional que se revela a
natureza propagandística dos ataques ao patrimônio privado. Eles visam chocar o
público e marcar posição antagônica à dos meios ortodoxos de mobilização. O viés performático da ação direta alimenta a simbologia radical de uma revolta
que não pode romper os laços com as instâncias representativas tradicionais,
pois delas recebe um contraponto oportuno e uma base de potenciais seguidores.
Sem vidraças quebradas, a ilusão da pureza “tática” desmorona.
A máscara participa da pantomima. É o ícone
diferenciador do coletivo radical no ato de motivações pacíficas. Mas essa marca
de funcionalidade também ajuda a incorporar os grupos black blocs às passeatas,
que os assimilam como uma espécie de vanguarda protetora e reativa. Então
eles se transformam na tropa de choque dos manifestantes.
O paralelo com as forças policiais não é gratuito.
A indumentária significativa, o anonimato, o senso do dever e o uso seletivo (“tático”)
da força compõem tanto os discursos dos repressores quanto os de seus
adversários. Unidos no ódio pela imprensa, eles agora se espelham até na
capacidade letal de atingir seus profissionais. Medindo pedras e balas, bombas
e rojões, a opressão estatal legitima a violência dos anarquistas e vice-versa.
Todos são parceiros de coreografia nesse carnaval midiático, fetiches úteis que o noticiário incentiva para despolitizar os movimentos sociais e a
violência que eles sofrem.
Isoladamente, não há dúvidas sobre qual das hordas
inimigas contribuiu mais para as demandas populares em 2013: a repressão dos cossacos trouxe novas multidões às ruas, enquanto a chegada dos depredadores
marcou o início do esvaziamento dos protestos. Além de fornecer
pretextos para a sua criminalização, a presença dos black blocs exaure as chances
práticas da iniciativa reivindicatória. A pancadaria inevitável exime as
autoridades de sequer encenarem a disposição para negociar.
Mas a maior contradição da fantasia tática do
black bloc é exatamente a inviabilidade como estratégia reformista. Primeiro
porque o ativismo destrutivo entrega aos fardados oficiais a única vitória real
que eles podem almejar contra a indignação coletiva. Ao mesmo tempo, espelhando
os procedimentos coercitivos dos poderes vigentes, o projeto insurrecional se
parece cada vez mais com as próprias estruturas que afirma combater, afastando
a militância em busca de novas formas de luta.
Talvez esta seja a verdadeira intenção dos
mascarados, no final das contas.
Um comentário:
Excelente. A melhor analise.
Faltou esclarecer quem os manipula.
Sao muito oraganizados....capazes de chegar as cinco da manha nos terminais urbanos,para evitar saida de onibus...Talvez a garotada esteja sendo levada no bico por quem os manipula. Nao há espontaneadade e sim premeditação extrema.
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