Publicado no Observatório da Imprensa
O Marco Regulatório das
Comunicações ocupa espaço privilegiado nos debates da esquerda brasileira. Entre
seus ativos defensores, além da blogosfera mobilizada, há o
ex-ministro Franklin Martins (que tanta falta fez ao governo Dilma Rousseff) e várias
entidades ligadas ao setor, reunidas numa Frente Parlamentar que aglutina
os resultados das consultas públicas realizadas nos últimos anos. Alheio às
pressões, contudo, o Planalto esquiva-se do projeto e não parece disposto a
abraçá-lo no curto prazo. Menos ainda no contexto político-eleitoral de 2014.
Um dos grandes problemas
originais da iniciativa foi agregar expressões infelizes como “controle social
da mídia”, que apareceram com a mesma ambigüidade tanto nos elogios da
militância progressista quanto nas objeções do conservadorismo organizado. Cada
qual apresentou sua própria noção de “controle”, de “social” e de “mídia”, prejudicando
um conceito que tem pouco ou nada a ver com essa terminologia.
Os adeptos da medida
são unânimes quanto aos malefícios que a justificam. Mas apenas diagnosticá-los
não basta: é necessário elaborar expedientes preventivos ou reparatórios que respeitem
os princípios do Estado democrático de direito e ajudem a consolidar a
miscelânea de normas existentes. Pois, ao contrário do que muitos pensam, a
maioria dos gêneros e subgêneros de abusos identificados com o setor (difamação,
calúnia, preconceito, desdém pela cultura regional, monopólio corporativo, predomínio
do capital estrangeiro, manipulação eleitoral) encontra-se tipificada
legalmente. Falta o Congresso regulamentar os tópicos e dar-lhes base jurídica
incontroversa.
Ao mesmo tempo, o vácuo de legitimidade criado
pela omissão parlamentar gera incertezas sobre os organismos mais apropriados
para a supervisão de atividades tão vastas e complexas. Há séria diferença
entre nomear e eleger os fiscalizadores, entre selecioná-los na estrutura dos
Poderes e em colegiados setoriais, entre preservar a auto-regulação e
atravessá-la com decisões externas. O dilema envolve inúmeras implicações práticas
e termina paralisando o debate sobre a própria natureza dessa tutela.
Existem dificuldades também para elucidar o
alcance da fiscalização. “Mídia”, em tese, abarca uma vastidão de suportes, mas
é sabido que ninguém conseguirá impor limites à internet ou aos periódicos
impressos, ainda que ambos sejam alvos de largo descontentamento. Restariam os veículos
de rádio e TV, concessões públicas sujeitas a variadas contrapartidas. Mas como
proteger a subjetividade no discurso audiovisual, afastando as patrulhas do
“bom-gosto” e da “decência”, que amiúde exibem suas garras autoritárias?
Reposta simples e inevitável: rechaçando qualquer tentativa
de cerceamento das manifestações autorais, opinativas e jornalísticas. Ora, respeitadas
as amplas acepções dessas categorias e descontando a excepcionalidade do
universo publicitário, quase todo material propagado por radiodifusão poderia
resguardar-se através de alegados preceitos constitucionais. Mesmo os produtos
mais discutíveis (do proselitismo religioso ao odiado Big Brother), forçando
a retórica liberal e os gastos dos lobbies legislativos, teriam sobrevida
assegurada. E, convenhamos, é bastante remota a hipótese de certas atrações populares
e rentáveis serem explicitamente proibidas.
Talvez para evitar as dificultosas
particularidades nacionais, alguns militantes recorrem ao elogio de fórmulas estrangeiras,
sem perceber que se distanciam ainda mais de uma solução razoável. Primeiro,
porque superestimam as raízes libertárias do controle midiático em democracias
desenvolvidas, onde o acirramento da pressão às TVs abertas identifica-se
historicamente com a agenda de governos ultraconservadores (o período Bush nos EUA, por exemplo). Em segundo lugar, nem as rigorosas legislações européias
nem a comemorada Ley de Medios argentina foram capazes de impedir a sofrível
qualidade das programações gratuitas nos veículos privados. Ademais, é incoerente
buscar modelos normativos em sociedades que desfrutam de emissoras públicas
poderosas, tradicionais e respeitadas, e de Judiciários dispostos a seguir o
mínimo espírito republicano nas suas demandas.
Em suma, o nosso Marco Regulatório, apesar da
verborragia que caracteriza reivindicações do tipo, envolve “apenas” alguns dispositivos
para inclusão de conteúdo setorizado, o combate ao abuso de poder empresarial
nas concessões públicas e, na melhor das hipóteses, o seu controle pelos
parlamentares. Parece muito, mas, ao cabo de todas as ressalvas e adaptações técnicas,
o resultado não ficará muito distante do modelo atual. Podemos adivinhar a
avalanche de sócios fantasmas, empresas de fachada e programações canhestras
que virá remendar as necessidades dos infratores.
De qualquer modo, no árduo cotidiano das ações
judiciais, os esforços punitivos serão barrados pela proverbial resistência das
cortes, com os diversos subterfúgios que a caracterizam. Assim, uma dolorosa
maioria dos vícios midiáticos repudiados pela esquerda permanecerá intocada,
simplesmente porque jamais haverá suporte legal, respaldo popular ou vontade
política para extingui-los. É aconselhável, portanto, discutir o projeto com
base nas dimensões que a realidade cedo ou tarde imporá.
Antes que as expectativas desmoronem e o movimento
perca o salutar ímpeto inicial, talvez fosse mais eficaz redefinir suas
prioridades. Pois há algo de assombroso no fato de que, em pleno combate pela
democratização da mídia, ninguém sugira alternativas progressistas, fora do
difuso espectro virtual, que possam romper o monopólio informativo das grandes
corporações. Se a militância está preocupada com os suportes tradicionais, não
seria razoável articular a criação de um jornal diário ou um canal de televisão
com abrangência e níveis editoriais suficientes para contrapor os veículos hegemônicos?
Um pouco de espírito propositivo e empreendedor
agregaria novas perspectivas a essa causa meio ingrata, que se arrisca a
terminar seus dias lutando para deixar as coisas como estão.
Um comentário:
Seu que seu texto é de Maio, mas me parece que a Presidente se posicionou a favor de buscar uma regra geral num eventual próximo governo.
Não tenho conhecimento aprofundado para opinar melhor, mas sinto que o tema avança no mundo e nos nosso vizinhos.
Postar um comentário