segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

A democracia como pretexto



Entre as narrativas que refutam a natureza golpista do impeachment é comum aparecer a ideia de que a “normalidade democrática” permaneceu intocada no país. O equívoco, às vezes involuntário, advém de uma distorção dupla envolvendo os termos desse conceito. 

O primeiro desvio confunde normalidade com normalização, isto é, o império da norma com a tolerância generalizada perante a sua violação cotidiana. Aqui se enquadram o fisiologismo criminoso do golpe e os abusos judiciais que o acompanharam. 

O outro erro se apoia em ritos institucionais que nada têm de especialmente democráticos. Ignora, assim, a coexistência histórica de parlamentos, tribunais e ditaduras, além da legitimação constitucional que os golpes sempre receberam. 

Ambos os enganos confluem para uma ideia coringa de democracia, adaptável a qualquer mácula que a descaracterize. Se as estruturas viciadas fazem parte do sistema, os vícios atestam a sua preservação. 

A Lava Jato simboliza o raciocínio. Seus arbítrios impunes viraram “excepcionalidades”, termo relativista que alude a uma regra positiva maior. Em vez de configurarem ameaças ao estado de Direito, são absolvidos sob a presunção de que este prevalece. 

Como de hábito, a verborragia adversativa minimiza o problema, equilibrando premissas inconciliáveis sob uma fachada otimista. E, mais grave, fornece um meio retórico para que toda excrescência autoritária pareça razoável. 

Porque “vivemos numa democracia”, podemos derrubar presidentes por motivos torpes, outorgar programas de governo rejeitados pelas urnas, censurar jornalistas, artistas e professores, manipular inquéritos, cassar candidaturas legítimas, esmagar manifestações pacíficas, invadir universidades, prender e humilhar inocentes. 

Mesmo admitindo que o país nunca foi plenamente democrático, a noção de ruptura continua válida. Ela descreve certas mudanças gradativas e direcionadas no paradigma habitual de desrespeito à constitucionalidade. Em poucas palavras, a instrumentalização político-partidária do modelo abusivo ancestral. 

Não há coincidência no fato desse garrote antidemocrático acompanhar avanços do Judiciário para estabelecer hegemonia sobre questões de alçada legislativa. Tampouco na ascensão simultânea de uma liderança reacionária ou na aberta motivação ideológica de magistrados que visam destruir o favorito das pesquisas eleitorais. 

Eis o sinal mais veemente do golpismo: o fim das supostas coincidências. Os abusos geradas pelo impeachment deixaram de parecer frutos isolados de uma estrutura podre. Exibem linhas coesas de estratégia, alvos prioritários, fontes institucionais delimitadas e até semelhança doutrinária.

Sempre com os mesmos interesses envolvidos, as mesmas vítimas, as mesmas facções impunes. E, principalmente, as mesmas vozes assegurando a permanência da tal “normalidade democrática” enquanto aplaudem a sua destruição. 

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