Nada mais apropriado para assistir a um show de Bob Dylan do que estar molambento, sujo e alquebrado, depois de sete horas de ônibus, alguns chopes na escaldante adega Pérola, um passeio pela areia de Copacabana e a interminável travessia até o Rio Arena.
Construído para sediar competições dos jogos Panamericanos, esse belo ginásio lembra os dos jogos da NBA, liga de basquete dos EUA. Há apenas cadeiras nos dois anéis das arquibancadas, mais as dispostas na quadra, diante do palco. Não chegou a lotar, mas a quadra, mais cara, sim. Somando os dois anéis superiores, restaram cerca de 20% vazios. A platéia era divertidamente eclética, indo de adolescentes imberbes (que não aparentavam saber muito sobre Dylan) até casais de frágeis septuagenários, passando pelos indefectíveis burgueses cariocas e sua proverbial grosseria.
O espetáculo começa com apenas sete minutos de atraso. Dylan já está no palco, em meio aos cinco membros da banda. O som é explosivo, altíssimo; primeiro agride, sujo e estourado, mas depois, como a grotesca voz do ídolo, torna-se gradativamente harmonioso. E, de repente, nos descobrimos ouvindo o mais vigoroso e competente roquenrol.
Não há acasos no repertório que abre o show. Começa com a pouco tocada “Rainy day woman # 25 & 35”, fazendo o ginásio ecoar em uníssono o refrão “everybody must get stoned” (“todo mundo precisa ficar doidão”; lamento, mas é isso que diz). “It ain’t me, babe” parece avisar a platéia de que ali não encontrará o menestrel de violão e gaita, acústico, arrastando as melodias conhecidíssimas dos hinos de protesto. “Não sou eu quem você está procurando”. Depois do contraponto de “I’ll be your baby tonight”, Dylan assume o teclado até o fim, resgatando a clássica “Masters of war”, tristemente propícia ao momento.
E assim começa o melhor da apresentação, baseada em arranjos originais e inspirados e no virtuosismo dos músicos. Compreendo os jornalistas que maldisseram essa completa transformação do repertório, a ponto de torná-lo irreconhecível para quem não domina as letras. Mas os críticos certamente são jovens demais para lembrar a apresentação de 1990, em São Paulo (dezoito anos atrás, senhores!), durante a chamada “Turnê Sem Fim”.
Numa fase particularmente atribulada de sua vida, Dylan tocou vestido de couro preto das botas ao chapéu, com uma garrafa de uísque ao lado (que esvaziou em goladas num copo de plástico), parecendo insatisfeito, pálido, talvez doente. Naquela ocasião, é verdade, todas as músicas soaram estranhamente semelhantes, como numa sucessão de trechos da mesma melodia, nos quais só mudassem os textos.
(Cabe aqui uma observação: revi há pouco um vídeo do show de 90 na praça da Apoteose, no Rio. Dylan parecia mais satisfeito. E “Like a rolling stone” não soou tão barulhenta. Talvez fosse o caso de revisitar aquele longínquo Hollywood Rock II.)
Agora, a fase “Modern Times” exibe um Dylan renovado, oficialmente sóbrio, que consegue até sorrir e mexer o quadril, num arremedo de travessura. Seus clássicos receberam arranjos de verdade, harmonicamente ricos, inspirados no blues e no rockabilly. Na maioria dos casos, o resultado é surpreendentemente agradável: “Masters of war”, “Highway 61 revisited”, “Blowin’ in the wind” e “Like a rolling stone” foram modernizadas com respeito e lirismo, ficando quase antológicas, ao lado de suas versões antigas e consagradas (há algumas gravações de celular, principalmente do show em São Paulo, no Youtube. Infelizmente, a qualidade é sofrível).
O líder da banda, o guitarrista Denny Freeman, faz toda a diferença. Veteraníssimo, com enorme experiência em botequins e casas noturnas, tocou com Jimmy e Steve Ray Vaughan, Albert Collins, Budy Guy, John Lee Hooker (que fazia shows com Dylan nos anos 60), Taj Mahal e uma constelação de astros menores da noite blueseira dos EUA. Sua presença no palco garante uma potência sonora e uma autoridade virtuosística que faltavam às formações anteriores.
Chega a ser comovente como Bob Dylan, já um velhinho carcomido por abusos de todo tipo, com um ronco catarrento no lugar da voz, continua em permanente metamorfose, jamais aceitando submeter-se aos desígnios fáceis do mercado. Desde 1964, quando foi estrondosamente vaiado no festival de Newport, por levar a eletricidade roqueira para o universo folk, Dylan trilha seus caminhos sem intervenções exteriores de qualquer tipo. Ele, que odeia ensaios e repetições, fez há muito uma opção pela atualização implacável de sua própria obra, mesmo às custas de torná-la irreconhecível. A idéia implícita em “Modern times”, como o nome antecipa, não poderia levar a outro resultado.
Nem sempre deu certo. Mas o tocante em Dylan é a escancarada falibilidade desse senhor baixinho e pachorrento, que sobe ao palco, toca o que quer, agradece e some, deixando seu público extasiado, fiel e agradecido, sem saber exatamente por quê.
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