quarta-feira, 19 de março de 2008

O Tibete é nosso

Os distúrbios tibetanos trazem uma possibilidade de reflexão sobre a fisionomia moderna do separatismo e seu uso como instrumento de propaganda no contexto dos embates geopolíticos. Ao contrário do que reivindica certo libertarismo de camiseta, é sempre muito difícil julgar os méritos dos movimentos autonomistas.
A lista de regiões que reivindicam soberania é extensa e antiga, revelando uma complexidade incômoda para os maniqueísmos. Há Kosovo na Sérvia, os curdos do Iraque e da Turquia, a Catalunha, a Galícia e o país Basco na Espanha, Quebec no Canadá, a Sardenha e a Padânia na Itália, Taiwan na própria China, a Córsega e a Bretanha na França, Flandres na Bélgica, a Chechênia, a Ossétia do Sul e o Daguestão na Rússia, Santa Cruz na Bolívia, Irlandeses no Reino Unido e um sem-número de etnias e povoados remotos com exigências que remontam à ancestralidade (entre eles os índios Sioux, que recentemente declararam-se independentes dos EUA).
É fácil defender irrestritamente o direito dos povos se autodeterminarem. Em tese, observadas algumas condições (contigüidade territorial e lingüística, identificação religiosa e cultural, ancestralidade comum) e havendo interesse coletivo, qualquer pedaço de país deveria ter o direito de se emancipar. Mas a coisa começa a ficar complicada quando descobrimos que essa propriedade não nos parece tão sensata quando aplicada a nós mesmos.
Espanha, Inglaterra, França e EUA sabem defender as independências kosovar ou tibetana, mas desconsideram semelhante direito para seus cidadãos, que possuem reivindicações talvez mais justas e contundentes. Cabe lembrar, a esse respeito, que o Tibete foi chinês e Kosovo sérvia por séculos, até o século XX, tendo seus estatutos modificados sob interferência de potências estrangeiras, para atender aos rearranjos convenientes a seu tempo.
Desnecessário reforçar, evidentemente, que os autonomistas tibetanos e kosovares não deixam de ter razão por isso. Os argumentos históricos não esgotam a questão, mas servem para relativizar (ou reforçar) ponderações de outras naturezas; e, afinal, a antigüidade representa um importante elemento legitimador das reivindicações. Por outro lado, se a História prevalecesse no debate, a Alemanha, a Holanda e até a França poderiam simplesmente desintegrar-se em centenas de províncias, herdeiras dos Estados surgidos no final da Idade Média e unificados apenas 400 anos depois.
Pensemos agora como reagiríamos se Santa Cruz virasse um enclave em território boliviano e logo fizesse um acordo militar com a China (evitemos o antiamericanismo) e, protegida por sua soberania de nação recém-nascida, fornecesse bases de treinamento e mão-de-obra para a indústria bélica daquele país. Ou imaginemos que a população que vive nas gigantescas áreas possuídas pelo reverendo Moon em vários Estados brasileiros passasse a reivindicar um estatuto autônomo, provando a observância àquelas condições acima esboçadas. Ou ainda, para deixar o desafio mais complicado, que os povos indígenas da região amazônica recebessem apoio das potências mundiais para criarem uma região preservada, sob escrutínio da ONU, utilizando sua posse imemorial daqueles recursos naturais como base para afirmar direito exclusivo sobre eles.
Cientes do tamanho do problema, os governos tendem a se unir num consenso tácito, contrário à fragmentação territorial de qualquer tipo. Soluções administrativas sensatas e pacíficas, principalmente se legitimadas pela manifestação popular, sempre serão possíveis e tendem a dominar os embates futuros. Mas também sobreviverá, infelizmente, a utilização política, hipócrita e conveniente, dos padecimentos alheios, para satisfazer interesses momentâneos, inconfessáveis, que nada têm a ver com os direitos e benefícios dos povos.

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