A crítica menosprezou esse relato autobiográfico de Bob Dylan, provavelmente por inveja e corporativismo, pois é muito superior à maioria dos livros escritos por jornalistas sobre ele. “Dylan”, de Howard Sounes, que devorei na última viagem ao Rio para assistir ao show do velhinho, é exemplo de trabalho burocrático, baseado em depoimentos vagos, notícias de jornal e releases. Mistura o que todo mundo já sabia com o que o autor quer que pensemos sobre as idiossincrasias do astro. E oculta informações preciosas, como a lesão na mão que Dylan sofreu por volta de 1987 e que quase o afastou definitivamente dos palcos.
Quem tentou ler “Tarântula”, mosaico tresloucado em versos, assusta-se com o texto envolvente, lírico e sincero de “Crônicas”. O livro divide-se em três momentos que Dylan julga marcantes de sua carreira: a chegada a Nova Iorque, até a gravação de seu primeiro álbum (1961-62), a saída de Woodstock, onde ele viveu acossado por uma legião de fãs e jornalistas (1970-71) e a gravação do álbum “No mercy”, de 1987-88. As duas últimas partes retratam as maiores crises pessoais e criativas enfrentadas pelo compositor, além de seus esforços para superá-las.
É impossível não reviver a atmosfera de “On the road”, de Jack Kerouac, influência óbvia na obra de Dylan: “Era um inverno glacial, com estalidos e faíscas no ar, noites cheias de névoa azul. Parecia fazer séculos desde que eu tinha deitado na grama verde e ela exalava um verdadeiro cheiro de verão – lampejos de luz dançando ao largo dos lagos e borboletas amarelas nas estradas de asfalto negro. Caminhando pela 7th Avenue de Manhattam nas primeiras horas, às vezes via-se gente dormindo nos bancos traseiros dos carros. Eu tinha sorte de ter lugares para ficar. (...) Havia um bocado de coisas que eu não tinha, não tinha uma identidade lá muito concreta. ‘I´m a rambler – I´m a gambler. I´m a long way from home’. Isso resumia muito bem a coisa”.
São fascinantes e comoventes os relatos sobre sua relação com Harry Belafonte, Johnny Cash e Roy Orbinson, além de encontros inusitados, como um pileque motivador com Bono, do U2. Mas sobressai a impagável história de sua temporada no apartamento de Ray Gooch e Chloe Kiel, casal estranhíssimo que possuía um verdadeiro arsenal pronto para uso (revólveres, fuzis e outras armas, com farta munição), a primeira biblioteca explorada pelo jovem Dylan, uma pequena fábrica de ópio e uma coleção de discos que ele devorava diariamente. Como em muitos outros lugares, Dylan dormiu ali, no sofá da sala, durante alguns meses.
“Crônicas” traz o subtítulo “volume um”, que infelizmente, deve ser apenas uma das traquinagens típicas de Dylan. Seria reconfortante imaginar a possibilidade de uma continuação.
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