O infeliz adoece e telefona para marcar uma consulta. O “convênio” (eufemismo para plano de saúde) só é atendido duas vezes por semana, e nas próximas oito não há horários. Temendo morrer antes de ser atendido, o desvalido aceita.
Quando chega o dia, já não percebe qualquer sintoma. Vai porque marcou e, afinal, pode ser alguma doença indolor. Mandam esperar. Há uns trezentos e vinte doentes espremidos na salinha, olhos vazios à televisão que exibe desenhos animados e madames cozinhando. Crianças choram, velhos dormem, e vice-versa. As revistas, rasgadas, comidas, são vetustas: uma capa anuncia o apagão elétrico de FHC. E por que sempre a maldita Veja?
Hora e meia depois, chamam. O médico é um grosseirão à paisana, dedos sujos, barba por fazer, bafo, cabelos desgrenhados. Manda sentar, mandando mesmo, como se anunciasse um bofete. Finge que ouve as queixas do incauto, não faz qualquer pergunta, rabisca uma receita em garranchos ilegíveis e levanta-se. Acabou.
O desrespeito é a regra do atendimento fornecido pelos planos privados. Nem todas as especialidades são cobertas, clínicos gerais “atendem” quase todo tipo de emergências nos hospitais, os funcionários são brucutus, muitos consultórios não possuem condições de higiene ou conforto, as enfermeiras parecem torturadoras medievais e os médicos... serão de fato médicos?
Claro, há o risco da generalização irresponsável. Mas, em se tratando de assunto tão delicado, uma simples ocorrência dessas já seria inaceitável; e, convenhamos, não se trata de infortúnios isolados. Alguém ponderaria, prenhe de razão, que o sistema público de saúde é imensamente pior. Sim, também pagamos por ele. Só que um absurdo não anula o outro.
Planos privados baseiam-se justamente na presunção da inviabilidade da alternativa estatal. Arrecadam quantias assombrosas para estabelecer relações de consumo com seus clientes, dividindo direitos e obrigações contratuais, submetidos a regulação e fiscalização. Mas, na vida real, transformam as contrapartidas legais em deveres unilaterais exclusivos do paciente. Administradores, médicos, laboratórios, clínicas e hospitais arvoram-se as prerrogativas mais variadas, inclusive aquelas que põem em risco a vida e o bem-estar do idiota que os financia. Ele que esteja em dia com os pagamentos, senão pode morrer num corredor qualquer (leia o texto na íntegra).
3 comentários:
Scalzilli, tudo bem? Vamos sair da literatura...
Gostaria de discutir cada parágrafo colocado por você, mas vou me restringir a dois:
1) Tivesse o CRM voz real no Congresso, não haveria tanta gente malformada no mercado, os convênios não teriam toda essa liberdade em transformar a medicina em campo de concentração, a saúde pública seria gerida por um SUS eficiente, quem acompanha sabe que essa é a realidade atual.
2) Quanto ao código de ética médica, também acho que não houve tanta divulgação, mas eu procurei participar das possíveis mudanças, e há grupos no Brasil todo tentando reverter tal situação, adiar a decisão final.
A alienação popular também é real, veja a questão da reforma ortográfica, quem participou ou precionou para que não ocorressem os absurdos que estão surgindo? Eu participei de um manifesto... Em Portugal.
guilherme, siplesmente brilhante!!!
você parece ter encarnado o anseio de milhões de brasileiros e diz tudo o que tencionamos dizer a cada vez que assistimos um jornal e vemos a hipocrisia vigente no cenário político, cada vez que fazeemos uso de um serviço público, seja na educação, saude ou segurança. agora, se tentarmos ver pelo lado positivo, um dia, talvez distante como parece, o povo brasileiro, inclusive a nossa ridicula e arrogante classe média, resolva se mecher e lutar pelos seus direitos. principalmente no caso dos pequenos burgueses que talvez se apercebam coomo iguais aos pobres e não tenham vergonha de usar os mesmos serviços.
há algum tempo não entrava no teu blog, e quando li as tres ultimas postagens..........
incrível! incrivel! incrivel!
foi como um soco no estomago, parecia que eu estava numa catarse!!
tanto dito em tao pouco....
um abraço guilherme!!!!
Daniel,
obrigado pelos elogios, espero continuar levantando questões relevantes.
Participe sempre.
Um abraço do
Guilherme
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