É verdade que o recurso ao preceito constitucional
que desobriga os motoristas de exames químicos servia para livrar a cara cheia
dos infratores. Mas essa prerrogativa continua valendo. Para neutralizá-la, os
autores da nova legislação de combate à embriaguês no volante precisaram criar
um remendo jurídico duplo, de perigosas implicações doutrinárias.
Primeiro, instituindo um preço para o direito
individual: custa quase dois mil reais apelar à Constituição, recusando
bafômetro ou extração de sangue. Segundo, e mais grave, estabelecendo que o
cidadão será considerado criminoso até que ele próprio forneça evidências
contrárias. Apenas os procedimentos técnicos reconhecidos na lei refutarão a
palavra de um dedo-duro ocasional. Quando alertamos para os riscos do STF
brincar de inverter o ônus da prova, era mais ou menos isso que antevíamos.
De madrugada, numa rua de periferia ou estrada
remota, o dilema resultará em propina para policiais malvados. Acossada por um
falso testemunho, a vítima terá o veículo apreendido, será fichada e, caso
escape da detenção, precisará arranjar meios de buscar outra delegacia ou um
hospital onde registre sua sobriedade (antes do prazo que a hipotética dosagem
levaria para sumir da corrente sanguínea). Anda precisaria voltar para casa
(sem carro), esperar o resultado e depois recorrer da multa e da suspensão da
carteira. Qualquer molha-mão de trezentos dinheiros compensa tamanho martírio.
Supondo, nas mesmas circunstâncias, que o abordado
é um doutor de anel no dedinho que verteu dois uísques na boate, os testemunhos
não valerão bulhufas. Sem apresentar grave alteração psicomotora e fazendo registrar
que pediu um teste preciso, mas que a autoridade não tinha condições de fornecê-lo,
o bacana passará impune. Tudo é possível no Judiciário, mas, nesse caso, não
duvido que mesmo o diagnóstico de um profissional seja desconsiderado pelas instâncias
superiores.
Resumindo, a idéia só faria sentido se todas as a
inspeções policiais e todas as delegacias e postos rodoviários do país tivessem equipamentos confiáveis para aferir com exatidão o grau alcoólico do motorista.
Incluindo exames obrigatórios de taxistas, condutores de coletivos e caminhoneiros.
Como essa quimera é irrealizável, a festejada “lei seca” transformou-se num
evento de exibição policial a ser montado nas avenidas próximas aos badalados circuitos
notívagos das grandes cidades.
Não há grande surpresa em constatar a fragilidade jurídica
de iniciativas saneadoras baseadas apenas em seus propósitos louváveis. Muito
mais graves são os meios adotados para a criação dessas leis e o que eles revelam
sobre os rumos do próprio Estado de Direito no país.
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