segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A lei do playboy sóbrio



















É verdade que o recurso ao preceito constitucional que desobriga os motoristas de exames químicos servia para livrar a cara cheia dos infratores. Mas essa prerrogativa continua valendo. Para neutralizá-la, os autores da nova legislação de combate à embriaguês no volante precisaram criar um remendo jurídico duplo, de perigosas implicações doutrinárias.

Primeiro, instituindo um preço para o direito individual: custa quase dois mil reais apelar à Constituição, recusando bafômetro ou extração de sangue. Segundo, e mais grave, estabelecendo que o cidadão será considerado criminoso até que ele próprio forneça evidências contrárias. Apenas os procedimentos técnicos reconhecidos na lei refutarão a palavra de um dedo-duro ocasional. Quando alertamos para os riscos do STF brincar de inverter o ônus da prova, era mais ou menos isso que antevíamos.

De madrugada, numa rua de periferia ou estrada remota, o dilema resultará em propina para policiais malvados. Acossada por um falso testemunho, a vítima terá o veículo apreendido, será fichada e, caso escape da detenção, precisará arranjar meios de buscar outra delegacia ou um hospital onde registre sua sobriedade (antes do prazo que a hipotética dosagem levaria para sumir da corrente sanguínea). Anda precisaria voltar para casa (sem carro), esperar o resultado e depois recorrer da multa e da suspensão da carteira. Qualquer molha-mão de trezentos dinheiros compensa tamanho martírio.

Supondo, nas mesmas circunstâncias, que o abordado é um doutor de anel no dedinho que verteu dois uísques na boate, os testemunhos não valerão bulhufas. Sem apresentar grave alteração psicomotora e fazendo registrar que pediu um teste preciso, mas que a autoridade não tinha condições de fornecê-lo, o bacana passará impune. Tudo é possível no Judiciário, mas, nesse caso, não duvido que mesmo o diagnóstico de um profissional seja desconsiderado pelas instâncias superiores.  

Resumindo, a idéia só faria sentido se todas as a inspeções policiais e todas as delegacias e postos rodoviários do país tivessem equipamentos confiáveis para aferir com exatidão o grau alcoólico do motorista. Incluindo exames obrigatórios de taxistas, condutores de coletivos e caminhoneiros. Como essa quimera é irrealizável, a festejada “lei seca” transformou-se num evento de exibição policial a ser montado nas avenidas próximas aos badalados circuitos notívagos das grandes cidades.

Não há grande surpresa em constatar a fragilidade jurídica de iniciativas saneadoras baseadas apenas em seus propósitos louváveis. Muito mais graves são os meios adotados para a criação dessas leis e o que eles revelam sobre os rumos do próprio Estado de Direito no país.

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