sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

“Lincoln”
























Retrato intimista do presidente ao longo da guerra civil (1861-65), enfocando seus esforços para impor o fim da servidão a um país profundamente racista e escravocrata. O naturalismo predomina, da luz dura e contrastante à interpretação vigorosa de Daniel Day-Lewis. Há escorregadelas, como na música sempre pomposa de John Williams e no tom discursivo dos diálogos, mas o aspecto geral remete a um cinema reflexivo, limpo de malabarismos técnicos e distrações de gênero.

Essa limpeza narrativa resulta no único defeito latente do filme: sua ortodoxia formal, ou, para usar um termo vetusto, seu academicismo. Se Steven Spielberg explorasse o infinito potencial financeiro a seu dispor, teria adicionado ao projeto uma dimensão propriamente cinematográfica, elevando-o a patamares épicos. É o que se observa, por exemplo, no maravilhoso elenco secundário, verdadeira súmula dos melhores atores coadjuvantes do cinema e da TV estadunidenses.

É impossível não assimilar a mensagem política de Spielberg, em si mais eloquente do que os oportunismos cronológicos envolvendo a reeleição de Barack Obama. O paralelo entre os presidentes é tão óbvio que (vou agora expor o final do filme) o assassinato de Lincoln, de grande potencial fílmico, se transformou numa elipse muito estranha. E por trás desse paralelo está o cerne do enredo: um elogio ao espírito visionário de certos líderes transformadores.

Daí surgem algumas questões incômodas. Devemos ignorar os meios duvidosos que Lincoln usou para aprovar a emenda abolicionista, em nome de seus propósitos irrefutáveis? Já que a luta de Obama por um sistema democrático de saúde pública nos EUA pode ser associada simbolicamente à de Lincoln (e a estupidez dos seus respectivos adversários certamente os assemelha), aquelas irregularidades do passado seriam aceitáveis no presente, desde que materializassem um avanço histórico semelhante? Quer dizer, seguindo Spielberg no elogio a Lincoln, aplaudimos também o pragmatismo político e seus instrumentos temerários?

Alguém poderia afirmar que a luta pela erradicação da miséria, no século XXI, equivale ao movimento abolicionista de outrora. Só que então seria razoável não apenas tolerar, mas inclusive defender e exigir o recurso a todo instrumento necessário que atinja essa finalidade inquestionável. Portanto não faz sentido condenar os chamados mensalões da vida, já que serviram a causas superiores, unânimes, urgentes, atemporais. Os mesmos rigores éticos usados com Luiz Inácio da Silva e José Dirceu deveriam valer para Abraham Lincoln e William H. Seward.

Pois é.

Um comentário:

TEMPO DE CRÍTICA disse...

Leitura atenta e cuidadosa, identifiquei-me com ela...
abraços!