Retrato intimista do presidente ao longo da guerra
civil (1861-65), enfocando seus esforços para impor o fim da servidão a um país
profundamente racista e escravocrata. O naturalismo predomina, da luz dura e
contrastante à interpretação vigorosa de Daniel Day-Lewis. Há escorregadelas,
como na música sempre pomposa de John Williams e no tom discursivo dos diálogos,
mas o aspecto geral remete a um cinema reflexivo, limpo de malabarismos
técnicos e distrações de gênero.
Essa limpeza narrativa resulta no único defeito
latente do filme: sua ortodoxia formal, ou, para usar um termo vetusto, seu
academicismo. Se Steven Spielberg explorasse o infinito potencial
financeiro a seu dispor, teria adicionado ao projeto uma dimensão propriamente
cinematográfica, elevando-o a patamares épicos. É o que se observa, por
exemplo, no maravilhoso elenco secundário, verdadeira súmula dos melhores
atores coadjuvantes do cinema e da TV estadunidenses.
É impossível não assimilar a mensagem política de
Spielberg, em si mais eloquente do que os oportunismos cronológicos envolvendo a
reeleição de Barack Obama. O paralelo entre os presidentes é tão óbvio que (vou
agora expor o final do filme) o assassinato de Lincoln, de grande potencial
fílmico, se transformou numa elipse muito estranha. E por trás desse paralelo
está o cerne do enredo: um elogio ao espírito visionário de certos líderes
transformadores.
Daí surgem algumas questões incômodas. Devemos
ignorar os meios duvidosos que Lincoln usou para aprovar a emenda abolicionista,
em nome de seus propósitos irrefutáveis? Já que a luta de Obama por um sistema
democrático de saúde pública nos EUA pode ser associada simbolicamente à de
Lincoln (e a estupidez dos seus respectivos adversários certamente os assemelha),
aquelas irregularidades do passado seriam aceitáveis no presente, desde que
materializassem um avanço histórico semelhante? Quer dizer, seguindo Spielberg
no elogio a Lincoln, aplaudimos também o pragmatismo político e seus
instrumentos temerários?
Alguém poderia afirmar que a luta pela erradicação
da miséria, no século XXI, equivale ao movimento abolicionista de outrora. Só que então seria razoável não apenas tolerar, mas inclusive defender e exigir o recurso a
todo instrumento necessário que atinja essa finalidade inquestionável. Portanto
não faz sentido condenar os chamados mensalões da vida, já que serviram a causas
superiores, unânimes, urgentes, atemporais. Os mesmos rigores éticos usados com Luiz Inácio da Silva e José Dirceu deveriam valer para Abraham Lincoln
e William H. Seward.
Pois é.
Um comentário:
Leitura atenta e cuidadosa, identifiquei-me com ela...
abraços!
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