Publicado no Amálgama.
O histórico das manifestações que se espalharam
pelo país teve três momentos distintos. Os ataques da Polícia Militar em São
Paulo e a revogação dos aumentos das tarifas de transporte modificaram as
formas de organização dos protestos e os discursos da imprensa corporativa a
seu respeito.
No início, ainda quase restrito à capital
paulista, o fenômeno possuía feição jovem e estudantil. O tom era
partidarizado, com presença ostensiva de bandeiras do PSTU, do PSOL e outras agremiações
afins. O petista Fernando Haddad protagonizava o material gráfico exibido, os
discursos, os refrãos entoados e até as convocações das redes sociais. Apesar
dos manifestos oficiosos, as reivindicações privilegiavam as passagens de
ônibus. O governador tucano Geraldo Alckmin, responsável pelos péssimos serviços metro-ferroviários, recebia menções esparsas.
A imprensa reverberou essas limitações. Ademais, focada
na controversa questão da gratuidade e incomodada com a paralisia da metrópole,
aproveitou para retratar os protestantes como arruaceiros inconseqüentes.
Editoriais e colunistas exigiam que fossem reprimidos, encarcerados, responsabilizados
judicialmente.
A administração Alckmin, confiante no apoio
midiático, julgou que a violência policial acuaria os manifestantes, pondo fim
às passeatas. O governador terminaria com a imagem do pulso firme legalista, conveniente
ao desgaste do colapso da Segurança Pública no estado. E os cossacos
demotucanos responderam à altura.
Esse foi o primeiro marco divisório na trajetória
da efeméride. A repressão desmedida instigou o ânimo revoltoso de uma parcela
da juventude que normalmente não se dedica a aventuras reivindicatórias. As
redes sociais popularizaram a insistência dos revoltosos e passaram a incluir outras
demandas, aglutinadas no mote irresistível do direito de protestar.
As bandeiras de partidos e sindicatos começaram a
desaparecer na medida em que os protestos chegavam ao ápice participativo. Numa
guinada estratégica de aglutinação, o Movimento Passe Livre assimilou um
apartidarismo aflito, permeável à adesão meio tardia de setores petistas. Só
então o nome de Geraldo Alckmin foi efetivamente trazido ao debate, embora
amiúde oculto sob os agravos à Polícia Militar.
Atingida no espírito corporativista pela agressão
aos seus profissionais e não podendo ignorar as dimensões do acontecimento, a
grande mídia viu-se constrangida a adotar a onda que há pouco denegrira. Os
eternos inimigos dos “baderneiros” passaram a retratá-los como heróis
civilizatórios. Para embasar a reviravolta, porém, construíram uma imagem do
fervor revolucionário adequada ao seu próprio conceito do que era “aceitável”
em termos de insurreição.
As passagens municipais (e Haddad) continuaram na
origem exclusiva da revolta, mas ela adquiriu a maior abrangência possível. O
alvo dos protestos foi “federalizado”, sublimando-se além dos âmbitos
estaduais, sem atingi-los. Alckmin desapareceu novamente. As coberturas e
análises sugaram Dilma Rousseff e o Congresso Nacional para o redemoinho. O PT
ganhou responsabilidades diretas e indiretas pela turbulência.
As vitórias pontuais do MPL marcaram a irrupção da
terceira etapa dos protestos. A frustração com um desfecho negociado radicalizou
parte da militância. A brutalidade das polícias e os devaneios revolucionários do ativismo virtual estimularam a inconsequência reivindicatória que
passou a predominar nas passeatas. As manobras de confronto e vandalismo perderam
o aspecto caótico e aleatório de antes. Surgiram focos de ataques a partidos
políticos, às instituições republicanas e mesmo à democracia.
O esvaziamento da plataforma tangível foi preenchido
com a incorporação de temas originalmente articulados pelo noticiário dos
grandes veículos. Os poucos jargões propositivos (“em defesa dos poderes de
investigação do Ministério Público”) insinuam que certas pautas não seguem
apenas anseios espontâneos e desarticulados. As demandas amplas, como o repúdio
à corrupção e a defesa de investimentos na educação e na saúde, satisfazem a multiplicidade ideológica dos novos protestantes. E o oportunismo
daqueles que se beneficiam do clima de instabilidade que ronda o país.
A imprensa, depois de criminalizar e em seguida estimular
as passeatas, busca isentar-se da recepção negativa que elas passaram
a ter junto ao público majoritário. A
espetaculização policialesca da cobertura jornalística serve para forjar esse
distanciamento. Mas também pode indicar uma estratégia de responsabilização do
governo federal pelas violências, através da imagem de excessivamente
conciliador, omisso ou até patrocinador dos vândalos. É bom lembrar que sabemos
pouquíssimo a respeito dessas pessoas.
A armadilha visaria neutralizar os eventuais
benefícios à popularidade da presidenta Dilma, pressionando-a a endurecer sua
postura ou a patrocinar medidas repressivas dos aliados estaduais. Isso levaria
a polarizar de vez o cenário político, jogando os manifestantes ao confronto aberto
e uníssono com o Planalto. É impossível adivinhar o resultado desse hipotético enfrentamento,
mas não restam dúvidas sobre a posição que a mídia passaria a defender.
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