quarta-feira, 18 de junho de 2008

Werner Herzog

Minhas investigações em teoria e história cinematográficas desenvolveram-se a partir de referências mais ou menos definíveis.
A primeira veio do puro e simples entretenimento, sem pretensões. Aprende-se muito com os erros alheios, mas também com a capacidade de seduzir as platéias. Filmes B, de gênero ou os ditos “enlatados” entram nessa acepção, mas também Capra, Spielberg, Lumet e centenas de outros bons contadores de histórias.
Uma segunda vertente emana dos diretores cujas concepções estéticas, metodologias de trabalho e visões do mundo parecem compreensíveis e palpáveis. Provocam o desejo de igualá-los pela assimilação, como um artesão aprendiz imita os hábitos do mestre até encontrar o próprio estilo. Este é o caso de Tarkovski, Bertolucci e Hitchcock, para citar exemplos muito díspares.
Outros, como Bergman, Fellini e Sokurov, soam magicamente inatingíveis. Sinto como se pudesse assisti-los trabalhando por toda a vida, sem jamais captar a origem do mistério que emana de seus filmes. São momentos de sublimação artística, muito mais propícios à fruição maravilhada que ao aprendizado técnico. É um deleite cuja função didática vem com a inspiração.

Werner Herzog representa caso (quase) único para personificar uma fonte especial de incentivo. Ouvindo seus depoimentos, vendo suas filmagens, decifrando-o através dos filmes, compreendo mais sobre mim mesmo do que lograria em décadas de análise lacaniana. Reconheço cada sinapse catártica geradora dessa insânia iconoclasta e autodestrutiva, da entrega visceral e incansável, do ódio anti-social, da neurose e das fobias que servem ao mesmo tempo como combustíveis e venenos para o artista.
Certa comiseração de companheiro de hospício leva-me a lamentar que a sina de visionário incompreendido acomode-o na depressão auto-indulgente que às vezes ele exibe. É difícil elogiar seu sofrimento solitário, a obstinação vã, a exposição ao ridículo, a luta contraditória para sobreviver no interior da cultura de massas, que o rejeita e estigmatiza. Melhor seria admitir que suas idiossincrasias divertidas, tão familiares, resultam de um artista incondicionalmente honesto e libertário. E que o personagem Herzog, acima de seus filmes inimitáveis, representa a verdadeira fonte de aprendizado.
Herzog não filma para a coletividade, mas contra ela. Vive o ofício como uma aventura redentora, e registra-a para provar que aquilo tudo realmente existiu. Esse aspecto documental, de beleza incomparável, garante uma força única a seus trabalhos – e ele é um dos maiores documentaristas de todos os tempos. Sua fonte eterna é o romantismo alemão do Sturm und drang, tempestade e ímpeto, homem contra natureza, selvagem e civilização, razão e loucura, mártires e algozes. São rejeitados, párias, doentes ou lunáticos de pedra como ele mesmo, elevados à categoria dos heróis trágicos, combatendo deuses imaginários.

Comendo sapatos

A internet fornece muitas possibilidades de conhecer a personalidade do diretor alemão. Cito apenas uma delas. Em 1980, ele fez uma aposta com o documentarista Errol Morris: se este conseguisse terminar seu primeiro filme (o tocante “Gates of heaven”), Herzog comeria os próprios sapatos. Quando Morris completou a obra, houve um evento num teatro para promover a inacreditável comilança. O veterano e consagrado Les Blank registrou os acontecimentos, gerando um documentário de vinte minutos sobre Herzog e suas idéias.
O linque para o filme completo, em inglês, está aqui. Abaixo há uma versão resumida.

Um comentário:

Anônimo disse...

Deixemos a busca cosmética da redenção do gênero humano para a hipocrisia intitucionalizada dos meios de comunicação seculares e para as doutrinas ditas religiosas concuminadas com os jogos de poder que insistem em padronizar a realidade enquanto uma, perene e verdadeira realidade. Enquanto isto toda forma de auto-representação artística não em busca da verdade, mas de encontro com a experiência estética como síntese de expressão filosófica e literária propõe nos um respiro a esta tal realidade asfixiante e predatória ao pleno exercício do humano livre arbítrio. Werner Herzog ainda respira, e os divãs ainda suspiram, posto que, ainda que sufocante,neles que supostamente estão as lentes do mundo. E com este livre comentário, também respiro, afinal de contas, creio que os economistas e tecnocratas do mundo real são tão fantasistas quanto os cineastas, pero, bem, bem menos intrigantes e divertidos...

Abraço gênio Scalzilli

fks