Apesar da intenção respeitosa evidente, o uso do substantivo feminino “dona” antes de nomes próprios tornou-se impróprio e tolo. O termo vem de “dom”, mas também implica a acepção de “dono”. Originalmente qualificava a esposa do possuidor (da terra, de escravos) e chegou à modernidade com semelhante emprego: é a senhora de bens, quase sempre idosa, dotada de títulos próprios ou por matrimônio. Ironicamente, a palavra também se corrompeu para um significado oposto, o de prostituta ou mulher sexualmente liberada.
Esse dona-ruthismo da imprensa nacional reflete o vício da subserviência do capiau à sinhá, esposa do rude e autoritário sinhô, provedor do sustento e chefe dos fazeres da roça política. Enoja ouvir homenzarrões formados ruminando suas homenagens a “Dona Ruth” e “Dona Dagmar”, ajoelhados, chapéus nas mãos, prestes a tomar chicotadas por capricho do painho enlutado. Os comentaristas de lágrimas nos olhos, tecendo loas à santidade das falecidas, exibem provincianismo e afetação, falta de espírito crítico e dependência.
Seria mais digno da memória de Ruth Cardoso e Dagmar Frias de Oliveira se o noticiário as tratasse como seres humanos de destaque, grandiosos e complexos, mas também frágeis e contraditórios, como qualquer outro da fauna terráquea. Aliás, o “dona” possui também conotação machista muito acentuada, pois lembra permanentemente uma feminilidade que deveria ser irrelevante. Seu uso acarreta, por extensão, uma subjugação da mulher ao papel de esposa, amante ou filha de algum mandatário superior.
As duas personalidades em questão não combinam com a ternura submissa dos retratos póstumos. Não há qualquer desrespeito em levantar indagações biográficas que lhes façam justiça histórica, em meio ao ambiente de prostração acrítica. Ruth foi conivente com as milionárias privatizações irregulares promovidas por seu marido na Presidência? Dagmar sabia que veículos e dependências da Folha de São Paulo eram usados por torturadores e assassinos? Se tais questionamentos parecem impertinentes é porque lá no fundo do lacrimoso dona-ruthismo repousa uma sorridente malícia de caboclo bajulador, que conhece a importância do esquecimento para a continuidade das coisas.
2 comentários:
Muito bom post, excelente blog. Lembro de outro texto que não sei se foi aqui que li, falando da diferença de tratamento da mídia, na época dos cartões corporativos, entre a Marisa e a Dona Ruth, uma era simplesmente Marisa e a outra Dona.
Abs
Heder
Finalmente, Guilherme, vejo alguém dissertando sobre isso.
Foram dias de agonia e de um pensamento que não me saía da cabeça: será que ninguém percebe isso?
É hipocrisia misturada com subserviência e a condição de santo que os poderosos falecidos adquirem, mostra que isso é coisa de gente que ainda tem muito a aprender.
Abraços,
Menke
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