segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O ano assassinado

Publicado na revista Caros Amigos em setembro de 2008

Os apologistas estão certos quanto à extensão da herança de 1968, mas em sentido inverso ao pretendido. Após quarenta anos de escaramuças e derrotas pontuais, a contra-revolução conservadora triunfou. Não que as conquistas de outrora tenham desaparecido; na superfície, elas engendraram transformações importantes. A essência da reação, contudo, pulsa nas entranhas da mentalidade hegemônica.
As utopias revolucionárias perderam sentido, na medida em que o ímpeto libertário da juventude foi absorvido pelas antigas estruturas produtivas, a ponto de se tornar indissociável delas. O mito da insurreição comunista deu lugar ao da humanização do capitalismo globalizado, pressupondo sua perpetuação. O sonho igualitário e anticonsumista virou clichê da indústria do entretenimento. O totalitarismo do politicamente correto anulou o poder da provocação e do escândalo. O hedonismo, símbolo da contracultura, tornou-se um sintoma de sociopatia e autodestruição.
A Europa das barricadas abraçou a xenofobia. A polarização da Guerra Fria deu lugar a um multilateralismo hipócrita, que tolera agressões injustificáveis contra nações soberanas e silencia diante de genocídios e torturas. As potências econômicas ignoram a fome planetária e o colapso ambiental, e não há mais protestos capazes de dissuadir seus governantes, protegidos e inflexíveis como nunca.
A materialização parcial das plataformas de 1968 conferiu reputação heróica a realizações que hoje, em retrospecto, parecem historicamente inevitáveis. Os anseios verdadeiramente transformadores restaram inofensivos, neutralizados por reformas cosméticas e travestidos com os relativismos da moda. A glorificação da época, restrita a caricaturas e à nostalgia comportada dos sobreviventes, alimenta e dissimula o predomínio do conservadorismo.

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