segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Buzinai, cidadãos!



















Publicado no Amálgama.

Sempre que me vejo aprisionado num congestionamento fico estupefato com a passividade dos motoristas. Nos interiores dos veículos há rostos fechados, gestos obscenos, socos nos painéis, baforadas ansiosas, discussões ao celular. Porém, acima dos infernos pessoais e dos roncos esfumaçados, a serpente de lata esfrega-se pelo asfalto na mais completa prostração.

Entendo as duas principais justificativas para esse comportamento: não piorar as coisas e ater-se ao que é necessário. De fato, meter novos barulhos no caos insuportável apenas ajuda a piorá-lo, jamais resolve qualquer coisa na esfera prática imediata. Mas será que buzinar é assim tão inútil e despropositado?

Se raciocinarmos com algum distanciamento, notaremos que a buzina é o único meio que a vítima dispõe para externar seu repúdio, numa situação em que nada lhe resta senão sofrer, enclausurada e imóvel. E, convenhamos, protestos não existem para ser agradáveis, tampouco para solucionar diretamente os males que denunciam. Protestos devem, sim, doer nos ouvidos, incomodar os omissos, chacoalhar a mansidão reinante, afrontar os insensíveis.

É curioso que os motoristas desperdicem parcelas valiosas de suas vidas úteis (duas horas imóveis por dia equivalem a um mês inteiro no ano), mas evitem reagir contra esse castigo injustificável. Muitos se sentem culpados por usarem carros, porque assimilaram os diagnósticos simplórios (“excessivo número de veículos”) que a mídia corporativa tenta empurrar para a consciência do trabalhador. Outros estão satisfeitos com a chance de escapar dos ônibus e vagões lotados, das estações caóticas e da chuva, e fazem do estoicismo um símbolo de gratidão por esse privilégio.

Mas desconfio que a maioria não considera eticamente aceitável (no sentido de “politicamente correto”) reclamar. A tolerância é chique, educada, consciente. A mania do padecimento civilizado apóia-se numa conduta já bastante comum nas hordas citadinas, esse estoicismo um tanto blasé de quem já desistiu de lutar contra as agruras da vida urbana e aceita qualquer absurdo como sintoma de falência estrutural irreversível ou, pior, de uma condição brasileira inata.

Repitamos o óbvio sobre os congestionamentos: a culpa não é do motorista. Responsabilizá-lo soa tão absurdo quanto incriminar os passageiros pela superlotação dos coletivos. Soa tão absurdo, aliás, quanto acusar os condutores indignados de elitistas, como se as vítimas da paralisia não pertencessem a todas as classes trabalhadoras, incluindo os sofridos usuários dos ônibus e as pessoas que necessitam do fluxo urgente de ambulâncias, caminhões de bombeiros e viaturas policiais.

Talvez a cidade ideal seja uma cidade sem veículos particulares, mas este representa menos um objetivo programático do que uma consequência das melhorias sonhadas. Pois a frota exorbitante é apenas um sintoma do fracasso de planejamento e gestão que, na base da avalanche de erros, materializa a cidade inerte. Levada a extremos implausíveis, a proibição de carros de passeio causaria um colapso no sistema de transporte urbano. Se eles fossem de fato os causadores da desgraça, a proliferação recente de motocicletas teria amenizado alguma coisa.

Voltando ao óbvio: a culpa é do Poder Público, incapaz de fornecer um sistema viário digno aos contribuintes que pagam fortunas por ele. Controle de tráfego imbecil, falta de planejamento, de investimentos ou de fiscalização, alternativas insuficientes, pouco importa se os motivos são enormes e históricos. Cada minuto descartado numa rua entupida nasceu da incompetência, da insensibilidade ou da corrupção de alguém que recebe generoso salário para impedir que isso ocorra. Fruto de repertório publicitário poderoso, o mito da inevitabilidade da paralisia atua também na legitimação de remendos administrativos pretensamente modernos, como as insalubres e temerárias ciclofaixas dominicais, que apenas dissimulam a falta de políticas eficazes para o setor.

Para quem acredita na força mobilizadora de um bom escarcéu, buzinar, além de legítimo, torna-se imprescindível. É um grito de repúdio aos sacripantas que fingem ignorar o caos que fabricam. Se todos os dias houvesse um estrondoso buzinaço trincando as vidraças das metrópoles, atordoando as reuniões dos gabinetes refrigerados, violando o conforto das autoridades inacessíveis, elas teriam pelo menos um sinal dos sofrimentos que provocam nos seus financiadores.

Não precisa ser algo que atrapalhe hospitais, escolas e domicílios inocentes. Estes sofreriam, certamente, como em toda manifestação. Mas é possível minimizar danos, realizando os buzinaços, por exemplo, nas tormentosas cercanias dos prédios da administração pública. Com divulgação prévia nas redes sociais e a esperta provocação dos informados, talvez o barulho se concentre apenas em períodos e trajetos mais críticos. Cinco minutos diários fariam toda a diferença.

O importante é reagir, expor a indignação, constranger os (ir)responsáveis. É não aceitar o desgoverno como um fato consumado ou uma espécie de merecimento que nos priva de nossos direitos mais rudimentares. É romper o silêncio que reconforta os algozes da tragédia urbana diuturna.

Buzinemos, pois, enquanto ainda não desistimos de viver em comunidade.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom, devidamente compartilhado no facebook do ZonaCurva, grande abraço.