Publicado no Amálgama.
Sempre que me vejo aprisionado num
congestionamento fico estupefato com a passividade dos motoristas. Nos
interiores dos veículos há rostos fechados, gestos obscenos, socos nos painéis,
baforadas ansiosas, discussões ao celular. Porém, acima dos infernos pessoais e
dos roncos esfumaçados, a serpente de lata esfrega-se pelo asfalto na mais
completa prostração.
Entendo as duas principais justificativas para
esse comportamento: não piorar as coisas e ater-se ao que é necessário. De
fato, meter novos barulhos no caos insuportável apenas ajuda a piorá-lo, jamais
resolve qualquer coisa na esfera prática imediata. Mas será que buzinar é assim
tão inútil e despropositado?
Se raciocinarmos com algum distanciamento, notaremos
que a buzina é o único meio que a vítima dispõe para externar seu repúdio, numa
situação em que nada lhe resta senão sofrer, enclausurada e imóvel. E,
convenhamos, protestos não existem para ser agradáveis, tampouco para
solucionar diretamente os males que denunciam. Protestos devem, sim, doer nos
ouvidos, incomodar os omissos, chacoalhar a mansidão reinante, afrontar os
insensíveis.
É curioso que os motoristas desperdicem parcelas
valiosas de suas vidas úteis (duas horas imóveis por dia equivalem a um mês
inteiro no ano), mas evitem reagir contra esse castigo injustificável. Muitos se
sentem culpados por usarem carros, porque assimilaram os diagnósticos
simplórios (“excessivo número de veículos”) que a mídia corporativa tenta
empurrar para a consciência do trabalhador. Outros estão satisfeitos com a
chance de escapar dos ônibus e vagões lotados, das estações caóticas e da chuva,
e fazem do estoicismo um símbolo de gratidão por esse privilégio.
Mas desconfio que a maioria não considera
eticamente aceitável (no sentido de “politicamente correto”) reclamar. A
tolerância é chique, educada, consciente. A mania do padecimento civilizado
apóia-se numa conduta já bastante comum nas hordas citadinas, esse estoicismo
um tanto blasé de quem já desistiu de lutar contra as agruras da vida urbana e
aceita qualquer absurdo como sintoma de falência estrutural irreversível ou,
pior, de uma condição brasileira inata.
Repitamos o óbvio sobre os congestionamentos: a
culpa não é do motorista. Responsabilizá-lo soa tão absurdo quanto
incriminar os passageiros pela superlotação dos coletivos. Soa tão absurdo,
aliás, quanto acusar os condutores indignados de elitistas, como se as vítimas
da paralisia não pertencessem a todas as classes trabalhadoras, incluindo os
sofridos usuários dos ônibus e as pessoas que necessitam do fluxo urgente de
ambulâncias, caminhões de bombeiros e viaturas policiais.
Talvez a cidade ideal seja uma cidade sem veículos
particulares, mas este representa menos um objetivo programático do que uma
consequência das melhorias sonhadas. Pois a frota exorbitante é apenas um
sintoma do fracasso de planejamento e gestão que, na base da avalanche de erros, materializa a cidade inerte. Levada a extremos implausíveis, a
proibição de carros de passeio causaria um colapso no sistema de transporte
urbano. Se eles fossem de fato os causadores da desgraça, a proliferação recente de motocicletas teria amenizado alguma coisa.
Voltando ao óbvio: a culpa é do Poder Público,
incapaz de fornecer um sistema viário digno aos contribuintes que pagam
fortunas por ele. Controle de tráfego imbecil, falta de planejamento,
de investimentos ou de fiscalização, alternativas insuficientes, pouco importa
se os motivos são enormes e históricos. Cada minuto descartado numa rua
entupida nasceu da incompetência, da insensibilidade ou da corrupção de alguém
que recebe generoso salário para impedir que isso ocorra. Fruto de repertório
publicitário poderoso, o mito da inevitabilidade da paralisia atua também na
legitimação de remendos administrativos pretensamente modernos, como as insalubres e temerárias ciclofaixas dominicais, que apenas dissimulam a
falta de políticas eficazes para o setor.
Para quem acredita na força mobilizadora de um bom
escarcéu, buzinar, além de legítimo, torna-se imprescindível. É um grito de
repúdio aos sacripantas que fingem ignorar o caos que fabricam. Se todos os
dias houvesse um estrondoso buzinaço trincando as vidraças das metrópoles,
atordoando as reuniões dos gabinetes refrigerados, violando o conforto das
autoridades inacessíveis, elas teriam pelo menos um sinal dos sofrimentos que provocam
nos seus financiadores.
Não precisa ser algo que atrapalhe hospitais,
escolas e domicílios inocentes. Estes sofreriam, certamente, como em toda
manifestação. Mas é possível minimizar danos, realizando os buzinaços, por
exemplo, nas tormentosas cercanias dos prédios da administração pública. Com
divulgação prévia nas redes sociais e a esperta provocação dos informados,
talvez o barulho se concentre apenas em períodos e trajetos mais críticos. Cinco
minutos diários fariam toda a diferença.
O importante é reagir, expor a indignação,
constranger os (ir)responsáveis. É não aceitar o desgoverno como um fato
consumado ou uma espécie de merecimento que nos priva de nossos direitos mais
rudimentares. É romper o silêncio que reconforta os algozes da tragédia urbana
diuturna.
Buzinemos, pois, enquanto ainda não desistimos de
viver em comunidade.
Um comentário:
Muito bom, devidamente compartilhado no facebook do ZonaCurva, grande abraço.
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