segunda-feira, 27 de maio de 2013

Em defesa da dita






















O editorial da Folha de São Paulo de sábado (25/5), “Em defesa da Anistia”, engendra um discurso de teor autoritário que só poderia estar a serviço da impunidade dos criminosos do regime militar.

Logo no segundo parágrafo aparece “persecutório”, adjetivo discutível no contexto das atribuições da Comissão Nacional da Verdade e cheio de implicações revanchistas. Pior é encontrar, logo em seguida, “seus membros são livres para fazer constar no texto as recomendações que julgarem mais convenientes”. Por que a reiteração da obviedade? Quem pediu o aval da Folha?

“A proposta de mudar a Lei de Anistia”, segue o texto, “fomenta a discórdia no próprio grupo”. A iniciativa é associada à intriga, em oposição a um suposto espírito conciliador da maioria. Exatamente a tese dos ditadores civis e militares que redigiram a Lei. Então ressurge explicitamente o usual “revanchismo”, para justificar a falta de colaboração dos militares nas audiências. Coitados, eles estão apenas se protegendo.

Citar o endosso do Supremo Tribunal Federal é uma tentativa de conferir estatuto inquestionável a uma decisão de legitimidade no mínimo duvidosa. E também joga um apelo demagógico aos leitores que corroboram a atuação recente da corte. A frase seguinte inclui um trecho da medida de 1979, sem aspas, naturalizando a inaceitável expressão “motivações políticas” usada para unificar os crimes de agentes do Estado e de seus adversários, como se tivessem os mesmos recursos, meios e objetivos.

A idéia dos “ímpetos” e “conflitos e divisões” refreados insiste no caráter intransigente e irracional dos que defendem a punição dos bandidos. E que lutariam contra “o reencontro da sociedade consigo mesma” e “a reconstrução da democracia”. O estranho teor psicanalítico da primeira figura talvez se refira ao apoio majoritário recebido pelo golpe militar, inclusive da própria Folha. Mas o complemento lhe traz uma conotação apaziguadora, pois, “reencontrando-se”, os defensores do autoritarismo descobrem o âmago republicano desde sempre incutido nas suas boas intenções. Não foi assim que os ditadores explicaram a derrubada do fantasma comunista?

Reproduzo o nono capítulo: “Goste-se ou não, a passagem do regime de exceção para o Estado de Direito foi fruto de lutas, mas também de entendimentos. Antes de uma imposição, a anistia ampla foi um pacto que assegurou a transição democrática.” A expressão inicial é bem característica do vocabulário da autoridade. Mas o veredito da Folha independe mesmo de “gostarmos” dele? O próprio texto contradiz a negativa da “imposição”, outorgando um “pacto” que não permite discordância.

O indulto a assassinos, estupradores e torturadores “tem contribuído para que o país não se dilacere em lutas internas”, finaliza o editorial. As últimas palavras são fortes, algo ameaçadoras, típicas do alarmismo golpista. E completam-se muito coerentemente sugerindo que a comissão “deveria se concentrar em sua tarefa em vez de abraçar propostas inoportunas que extrapolam o seu próprio escopo”. A Folha ordena que os inconvenientes se coloquem nos seus lugares. Senão...

De fato, a defesa do indefensável exige uma retórica apropriada.

Um comentário:

Vinicius disse...

Acho que não é exagero constatar que essa é a opinião tradicional do leitor da Folha. Leitor esse que se indigna quanto o torturador/estuprador/assassino é preto ou pobre, esbraveja contra “aquela gentinha dos direitos humanos” afinal “bandido desses não tem conserto, pena de morte já!”, mas demonstra tanta complacência com o algoz do outro. 
 
Tenho uma impressão, e não sei bem o quão verdadeira ela é, a respeito do modo que a opinião publica trata os crimes cometidos durante a ditadura. Me parece ter havido uma mudança de um período em que eram identificados como combatentes do regime pessoas como FHC e Serra, para outro em que pessoas como Genoino e Dilma, em maior evidência desde 2003, passam a ser identificados não como combatentes mas como terroristas. 

Até o momento em que eram os soldados do neoliberalismo os heróicos opositores do golpe, parecia ser consenso entre a classe-media-bem-informada de que “terrorista” não era mais que um rótulo do regime para justificar a caça à dissidência. 
Com o novo consenso, cada dia que passa, a percepção de que os generais não estavam tão errados assim ganha mais espaço. 

Excelente o texto. 
Abraço, 

Vinicius.