O editorial da Folha de São Paulo de sábado (25/5),
“Em defesa da Anistia”, engendra um discurso de teor autoritário que só poderia
estar a serviço da impunidade dos criminosos do regime militar.
Logo no segundo parágrafo aparece “persecutório”, adjetivo
discutível no contexto das atribuições da Comissão Nacional da Verdade e cheio
de implicações revanchistas. Pior é encontrar, logo em seguida, “seus membros
são livres para fazer constar no texto as recomendações que julgarem mais
convenientes”. Por que a reiteração da obviedade? Quem pediu o aval da Folha?
“A proposta de mudar a Lei de Anistia”, segue o
texto, “fomenta a discórdia no próprio grupo”. A iniciativa é associada à intriga,
em oposição a um suposto espírito conciliador da maioria. Exatamente a tese dos
ditadores civis e militares que redigiram a Lei. Então ressurge explicitamente
o usual “revanchismo”, para justificar a falta de colaboração dos militares nas
audiências. Coitados, eles estão apenas se protegendo.
Citar o endosso do Supremo Tribunal Federal é uma
tentativa de conferir estatuto inquestionável a uma decisão de legitimidade no
mínimo duvidosa. E também joga um apelo demagógico aos leitores que corroboram a
atuação recente da corte. A frase seguinte inclui um trecho da medida de 1979, sem
aspas, naturalizando a inaceitável expressão “motivações políticas” usada para
unificar os crimes de agentes do Estado e de seus adversários, como se tivessem
os mesmos recursos, meios e objetivos.
A idéia dos “ímpetos” e “conflitos e divisões” refreados
insiste no caráter intransigente e irracional dos que defendem a punição dos
bandidos. E que lutariam contra “o reencontro da sociedade consigo mesma” e “a
reconstrução da democracia”. O estranho teor psicanalítico da primeira figura
talvez se refira ao apoio majoritário recebido pelo golpe militar, inclusive da própria Folha. Mas o complemento lhe traz uma conotação apaziguadora, pois, “reencontrando-se”,
os defensores do autoritarismo descobrem o âmago republicano desde sempre
incutido nas suas boas intenções. Não foi assim que os ditadores explicaram a
derrubada do fantasma comunista?
Reproduzo o nono capítulo: “Goste-se ou não, a
passagem do regime de exceção para o Estado de Direito foi fruto de lutas, mas
também de entendimentos. Antes de uma imposição, a anistia ampla foi um pacto
que assegurou a transição democrática.” A expressão inicial é bem característica
do vocabulário da autoridade. Mas o veredito da Folha independe mesmo de “gostarmos”
dele? O próprio texto contradiz a negativa da “imposição”, outorgando um “pacto”
que não permite discordância.
O indulto a assassinos, estupradores e
torturadores “tem contribuído para que o país não se dilacere em lutas internas”,
finaliza o editorial. As últimas palavras são fortes, algo ameaçadoras, típicas
do alarmismo golpista. E completam-se muito coerentemente sugerindo que a
comissão “deveria se concentrar em sua tarefa em vez de abraçar propostas
inoportunas que extrapolam o seu próprio escopo”. A Folha ordena que os
inconvenientes se coloquem nos seus lugares. Senão...
De fato, a defesa do indefensável exige uma
retórica apropriada.
Um comentário:
Acho que não é exagero constatar que essa é a opinião tradicional do leitor da Folha. Leitor esse que se indigna quanto o torturador/estuprador/assassino é preto ou pobre, esbraveja contra “aquela gentinha dos direitos humanos” afinal “bandido desses não tem conserto, pena de morte já!”, mas demonstra tanta complacência com o algoz do outro.
Tenho uma impressão, e não sei bem o quão verdadeira ela é, a respeito do modo que a opinião publica trata os crimes cometidos durante a ditadura. Me parece ter havido uma mudança de um período em que eram identificados como combatentes do regime pessoas como FHC e Serra, para outro em que pessoas como Genoino e Dilma, em maior evidência desde 2003, passam a ser identificados não como combatentes mas como terroristas.
Até o momento em que eram os soldados do neoliberalismo os heróicos opositores do golpe, parecia ser consenso entre a classe-media-bem-informada de que “terrorista” não era mais que um rótulo do regime para justificar a caça à dissidência.
Com o novo consenso, cada dia que passa, a percepção de que os generais não estavam tão errados assim ganha mais espaço.
Excelente o texto.
Abraço,
Vinicius.
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