terça-feira, 31 de março de 2020

Vírus oportunistas



As autoridades federais esperaram semanas para constatar a proliferação do coronavírus, algo que aconteceria justamente se elas esperassem. Alertadas por exemplos alheios, podendo impedir a sua repetição, preferiram a saída mais traumática e letal. Nesse ínterim, o presidente da República fazia piada com os riscos e incentivava o contágio.

Não houve incompetência, mas cálculo político-administrativo: disseminar imediatamente a doença para que o país volte logo à “normalidade” financeira, ainda que isso cause milhares de mortes evitáveis. O pânico também desmobiliza os indivíduos, sufoca pautas escandalosas e reivindicatórias, gera medidas repressivas e esconde o fracasso das reformas neoliberais.

O figurino patético embeleza o ogro fascista. Jair Bolsonaro interpreta o anti-herói renascido, lutando contra um inimigo sem bandeira, que não lhe causa embaraços morais e que, afinal, acabará derrotado. O rebelde antipolítico deixará estados e municípios à míngua, culpando-os pela recessão e usando sua eficácia para reiterar o discurso da gripezinha inofensiva.

As cúpulas empresariais, judiciárias e religiosas do bolsonarismo compartilham os objetivos do presidente, mas não a sua demência. Esferas bem informadas e pragmáticas, antevêem as consequências da aventura e se preparam para atender à sede vingativa da turba. Enquanto Bolso Nero segue conselhos incendiários, seus mentores o encharcam de combustível.

A participação da mídia corporativa nessa fritura é sintomática. Os veículos demonizam o presidente, mas poupam seus aliados e ministros. Ensinam cuidados inacessíveis à maioria dos cidadãos e responsabilizam os pobres pelo contágio, como se eles saíssem de casa por livre e empreendedora vontade. E os porta-vozes do Estado mínimo reclamam ajuda estatal.

Eis a dinâmica dos negacionismos em voga. Também a doença bolsonarista recebeu apoio de incautos e teve seus sintomas normalizados, até que não houvesse remédio. Os arrependidos acordaram tarde, para encontrar as vias democráticas interditadas, restando apenas a grande amnésia conciliadora sob os auspícios da direita. As panelas batucam de alívio.

Congresso e Judiciário parecem “resistir” ao lunático, mas de fato o aproveitam para legitimar suas próprias relevâncias, num sistema de pesos e contrapesos que opõe o tenebroso ao abjeto, a ditadura ao Regime de Exceção. Com paliativos tardios, remendos indecentes e lições civilizatórias hipócritas, naturalizam o pesadelo humano, econômico e social que se avizinha.

Bolsonaro segue no cargo porque engendra a catástrofe. Ela garante a receita dos comparsas, a bravura dos adversários e a reunificação do fascismo em sua nova cruzada salvacionista. Quando Sérgio Moro desfilar de blindado, zelando pelo toque de recolher, aqueles que ajudaram a piorar o contágio defenderão o confinamento absoluto, inclusive na campanha eleitoral, claro, para não piorar o contágio. Mas Luciano Huck poderá distribuir donativos.

Antes que o país fique polarizado entre doentes que sobreviveram e “privilegiados” que se resguardaram, com seus óbvios efeitos ideológicos, é necessário resistir à despolitização dos debates. Evitar que o “fique em casa” vire uma performance anódina do conforto civilizado, espécie de inversão desagregadora, apocalíptica e narcisista do “vem pra rua”.

Basta de humanismos apartidários e solidariedades passivas. A falsa isenção dos patrulheiros morais nunca passou de uma covarde tolerância com o fascismo. A fase do desprendimento republicano acabou na consumação do golpe judicial que pôs um genocida na Presidência, lançando o curso histórico que hoje leva à matança de vulneráveis. A culpa não é apenas de Bolsonaro. É de todos que um dia o consideraram aceitável. Todos.

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