quinta-feira, 28 de maio de 2020
O idílio do salvacionismo judicial
A celeuma provocada pela saída de Sérgio Moro do governo Bolsonaro criou expectativas falsas sobre o papel do Judiciário, em particular do STF, na eventual deposição do presidente. Não que reste dúvida acerca da índole criminosa do suspeito. Acontece que os tribunais não podem fazer o que se espera deles, nem estão dispostos a fazer o que deveriam.
Na seara do crime comum, pouco importam as obscenidades de Bolsonaro. Do desejo nefasto à prática delituosa há enorme distância. Para não cometer adivinhação, o STF depende de inquéritos alheios sobre os atos originais (homicídios, calúnias, “rachadinhas”, etc.), onde fiquem provadas as culpas de mandantes e cúmplices, inclusive, talvez, na Polícia Federal.
Já se os ilícitos residem nas ameaças de Bolsonaro aos princípios constitucionais, seriam crimes de responsabilidade, matéria de alçada legislativa. Os magistrados limitam-se a autorizar ritos e pedir providências. A corrupção fisiológica do Congresso não justifica o STF atuar como fiscal do Executivo. Essa tarefa, no rigor doutrinário, não lhe cabe.
Percebendo que trâmites e prerrogativas podem favorecer Bolsonaro, a demanda por atitudes saneadoras dos tribunais adota convicções. Esse novo “malufismo punitivista” aplaude medidas que, embora discutíveis, tenham nobres finalidades. Mas só a parte discutível se realiza. Os objetivos que a legitimam permanecem distantes, pedindo sempre novos abusos.
Levada às últimas coerências, a criminalização de bravatas deveria impedir Bolsonaro de nomear quem quer que fosse. Ridicularizando uma doença mortal em plena pandemia, ele não está apto a escolher ministros da Saúde. O mesmo vale para a Educação, depois de seus ataques à pesquisa acadêmica. Os pretextos intervencionistas renderiam páginas.
O raciocínio parece quimérico, mas já foi aceito no próprio STF. Em 2016, ludibriado pelos conspiradores da Lava Jato, o tribunal vetou a nomeação de Lula para ministro. Com base em gravações ilegais, alavancou um golpe parlamentar escandalosamente corrupto e permitiu uma tramoia clandestina que tirou da disputa eleitoral o maior antagonista de Bolsonaro.
Diante daquela postura expedita do STF de outrora, sobressai a péssima relação de custo e benefício de suas medidas polêmicas e ineficazes que hoje estariam impondo “freios” ao fascismo. Não faz diferença um amigo do amigo dirigir a PF. Ninguém obrigará Bolsonaro a entregar o aparelho telefônico. Duvido que a tal reunião gere ao menos um processo viável.
O STF afrontou a Constituição para depor Dilma Rousseff e manter Lula preso, mas se limita a causar aborrecimentos burocráticos a um governo fascista numa crise humanitária. Finge cercar Bolsonaro usando como referência alguém que cometeu ilícitos para elegê-lo. Em vez de combater o despotismo, provoca-o. Denuncia a ameaça de um golpe que ocorreu há anos.
Para além de performances inócuas de poder e bravatas redundantes, o messianismo judicial não passa de uma guerra vingativa entre facções de Moro e Bolsonaro que dominam gabinetes e delegacias. Tolerados em nome da ilusão que gerou a catástrofe, os pequenos deslizes do STF garantem a impunidade do bolsonarismo arrependido e naturalizam seus métodos.
Fosse imparcial em seu viés moralista e punitivo, o STF trataria Bolsonaro como tratou Dilma e Lula. Estivesse arrependido daquele erro, puniria Sérgio Moro por induzi-lo. O meio-termo é a conciliação que perpetuará o fascismo através da lavanderia midiática de reputações. Não existe lado aceitável na disputa entre o genocida e o Regime de Exceção que o pariu.
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