sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Calúnia proxy



O STF decidiu que veículos jornalísticos podem ser punidos por declarações falsas de entrevistados. O acórdão antecipa o modelo regulatório que tende a ser aplicado à mídia digital, igualando espaços noticiosos e plataformas de comunicação. É razoável.

Primeiro porque ficou impossível singularizar os discursos jornalísticos no hibridismo da internet. Segundo porque, em consequência, as medidas preventivas e corretivas para danos virtuais apresentam poucas variações de um tipo de conteúdo a outro.

Na seara lavajatista, o ramerrão cívico dos descontentes disfarça uma singela defesa da liberdade de publicar mentiras. A ideia é garantir a estratégia da “calúnia por procuração”, reservada para vésperas eleitorais, com estragos sabidamente irreversíveis.

Não há interesse público em falácia. Ninguém está proibido de expor uma acusação verossímil, desde que assuma o risco da atitude. Investigação ajuda, mas a maioria dos problemas se evita com honestidade, bom-senso editorial e sigilo de fonte.

Apesar de abjeta, a perseguição a veículos e profissionais vulneráveis não chega ao volume dos delitos conscientes que usam pretextos jornalísticos. Para cada denúncia legítima circulam centenas de falsidades com efeitos imediatos, amplos e duradouros.

Até a ideia de isentar transmissões ao vivo soa perversa. Todo ilícito passará a ser cometido nesse formato, viralizando em segundos. Mas o STF notará a armadilha quando o primeiro deslize atingir o poderoso errado, quiçá um de seus ministros.

Se existe solução para o arbítrio judicial, ela decerto não brotará do vácuo legislativo. Alguém precisa delimitar e fortalecer os mecanismos reparatórios cabíveis à mídia, inclusive como forma de valorização dos corretos procedimentos jornalísticos.

Mas parte da imprensa não gosta desses remédios. Prefere gozar as excepcionalidades de um sistema doente a torná-lo saudável, eficaz e justo. Seu padrão de independência é fiscalizar e julgar a si mesma, usufruindo as benesses impunes dos monopólios digitais.

Um livro de ficção acaba de ser proibido (sob a anuência do STF) porque um juiz local se identificou com o protagonista abusador. Não apareceu uma nota sequer de repúdio no comentarismo cidadão. “Cala a boca já morreu”, repetem os bajuladores da corte.

O avanço do obscurantismo justifica a relativização indiscriminada de direitos, que por sua vez naturaliza a censura obscurantista. O motor desse círculo vicioso é a falta de regras claras distinguindo a liberdade de expressão e o cinismo de tribunais e empresas.

Lamento admitir que as utopias digitais avinagraram. O que temos para hoje é garantir a sobrevivência do jornalismo democrático, para não falar da própria democracia, através de novo paradigma ético e legal. Talvez um dia possamos torná-lo obsoleto.

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