A China é uma idéia de múltiplas utilidades. Pouquíssimos brasileiros conhecem o gigantesco país, sua história e sua cultura milenares, os anseios e as opiniões da população, tão vasta quanto heterogênea. Mas todo comentarista, de qualquer editoria, parece dominar o assunto.
O exemplo da distante e inalcançável potência serve para apologias da competência gerencial e da crueldade produtiva, do centralismo autoritário e do vigor patriótico, da disciplina coletivista e da massificação desumana. Se alguém quer ridicularizar o ideário socialista, escolhe a parte útil dessa mitologia; se quer desancar o complexo de superioridade dos neoliberais, apanha outros jargões da pilha.
Nesse lodaçal de achismos botequineiros, não há sequer o escrúpulo da coerência, que é base da honestidade intelectual. Constrange ler e ouvir gente defendendo um hipotético boicote às transmissões das Olimpíadas por causa do autoritarismo estatal chinês ou da ocupação do Tibete, ou de qualquer outro motivo politicamente correto.
Algum desses livre-pensadores jamais cogitou deixar de assistir a filmes estadunidenses em protesto contra as torturas empreendidas pelos EUA nas prisões iraquianas e em Guantánamo? Alguém falou em condenar o jazz, o basquete da NBA ou os livros de Philip Roth porque o FBI espiona a internet e as ligações telefônicas de qualquer cidadão? Como é possível um morador de São Paulo afirmar que a poluição pequinesa impede a prática esportiva? Na Europa é chique ser maltratado, mas na China o governo insulta a integridade libertária?
Se a crônica tivesse a coragem ou a lisura de admitir que os Jogos chineses são um espetáculo de organização e competência, ela não pareceria cúmplice dos desmandos do governo centralizador. Pareceria apenas possuir maturidade para abordar assuntos complexos desprovidos de soluções bipolares fáceis.
Esse “mundo de fantasia cheio de slogans e sorrisos”, denunciado na organização olímpica por Marcelo Coelho, é semelhante ao que nos envolve, em nosso teatro de cidadania consumista. A China, paraíso e inferno de alienados, é o espectro do que não suportamos em nossa própria realidade, projetado para um mundo intangível. A ilusão nos consola.
3 comentários:
A China é o absurdo útil, é elevada à potência econômica quando a comparação nos inferioriza (ou ao governo), e permeada com críticas sociais pontuais, mas nunca incisivas, para manter a imagem do regime sob controle.
Um dos maiores exemplos é o uso do termo desenvolvimento sustentável para adjetivar o crescimento econômico chinês... mesmo expediente utilizado para gerar o ideário sobre os Tigres Asiáticos na Década de 90, escondendo, quando interessava, o massacre social que os financiou, e que desabou junto com o Governo FHC no final daquela década.
Seu texto descreve com rara precisão o mosaico chinês. Parabéns.
Quando li o texto do senhor Marcelo Coelho logo tomei a iniciativa de lhe enviar um recadinho alertando-o que a superação do atleta bulgaro é muito mais interessante, e , elucidadante sobre a fenomenologia humana, do que as idéias do colunista da Folha.
Assim tecido.
fabio sampaio
Mas é claro que os colunistas da mídia gorda não iriam deixar de escapar uma oportunidade de tecer elogios à "competência gerencial e da crueldade produtiva, do centralismo autoritário e do vigor patriótico, da disciplina coletivista e da massificação desumana" - isso tudo não reproduz, ideologicamente, o Taylorismo?
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