segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Piada sem graça



A propaganda com Gisele Bündchen, o personagem machista da novela global e as desventuras do tal Rafinha Bastos motivaram um clima de patrulhamento que precisa ser questionado enquanto resta algo a debater. A cada batalha moralista a esquerda se distancia do espírito libertário e tolerante que a diferenciava dos adversários. E permite que tais valores sejam apropriados pelo conservadorismo decadente, transformando-o em repositório de boas plataformas negligenciadas. Aconteceu com a descriminalização da maconha, por exemplo, e agora acontece com a liberdade de expressão.

Concordo que há limites para certas manifestações públicas, e sou defensor antigo de uma legislação específica voltada à imprensa. Mas quem estabelece limites no entretenimento, na farsa ou na ficção? O Tribunal dos Valores Éticos e Sociais? A Liga das Senhoras Ridentes analisará trocadilhos e anedotas? Qualquer dignidade que se julgar desrespeitada poderá vetar a provocação alheia? E se as vítimas de gangues psicóticas tentarem proibir “Laranja Mecânica”? Vamos amaldiçoar os velhos traquinas de Mario Monicelli ou os idiotas de Lars von Trier porque ridicularizam incautos e doentes? A animação “Family guy” será metida no índex degenerado? Há diferença entre vetar um filme sérvio ruim ou “Je Vous Salue, Marie”?

Essas questões incômodas evidenciam o perigo de se tolerar precedentes regulatórios na atividade criativa. Se os paralelos soam exagerados é porque os vilões momentâneos pertencem à chamada cultura de massas, tida como descartável, indigna de compartilhar as prerrogativas republicanas daqueles que a menosprezam. Os sábios jamais permitiriam bedelhos nas suas diversões “cultas”, mas não hesitam em determinar o que as audiências ignorantes podem assistir. A pedagogia do bom gosto camufla uma visão pejorativa do que é popular (nas muitas acepções possíveis), adquirindo um viés social pernicioso e, no limite, autodestrutivo.

Assusta ler setores da blogosfera recorrendo à bula politicamente correta para justificar seus arroubos censórios. Mas há lógica no raciocínio. O que motiva essa fantasia eugênica, moldada em padrões medíocres de conduta, é a anulação da individualidade e a conseqüente asfixia das divergências. O êxtase coletivista do pensamento único busca formar rebanhos homogêneos e dóceis, que aplaudem qualquer mistificação despótica para evitar a pecha de reacionário ou preconceituoso. Nem sempre funciona, e é por isso que ainda apostamos na democracia.

9 comentários:

Raphael Tsavkko Garcia disse...

Guilherme, encontro alguns problemas no seu post. Comparar Family Guy, por exemplo, com os casos que você reclama não funciona. Assim como os simpsons, se trata de um desenho co ma intenção de subverter valores e CRITICAR preconceitos. Rafinha Bastos, por exemplo, não critica nada, tão somente se aproveita deles para perpetuá-los e inflá-los.

O caso da Ministra e o roteiro de novela é um mal entendido. Ela PEDIU para que a novela - veículo que historicamente leva a transformações sociais - que inserisse uma mensagme positiva contra violência de gênero.

E, finalmente, o caso da Giselle, eu pessoalmente achei a propaganda detestável, mas não podemos culpar a ministra, que apenas foi ao CONAR (que é órgão dos próprios publicitários) PEDIR paraque algo fosse feito contra a propaganda. E não foi por sua punica vontade, mas pelo que recebeu da OUVIDORIA.

E, por favor, não estu defendendo o governo, sou oposição de esquerda, mas tão somente reconehcer que a Ministra não pode ser responsabilizada por fazer seu trabalho.

E rafinha Bastos é um imbecil!=)

Unknown disse...

Raphael, endosso cada frase do seu comentário. Os exemplos do texto são provocativos, claro. No limite, eu poderia usar até a Bíblia para defender o raciocínio. Mas a questão permanece: quem vai decidir quais "imbecis" criticam preconceitos e quais os perpetuam? No caso da propaganda, acho que as reações foram legítimas, justas e bem conduzidas. Só não concordo em usar o episódio para alimentar o coro dos guardiões do "bom gosto".
Abs
Guilherme

Raphael Tsavkko Garcia disse...

Aí, meu acaro, entramos no dilema universal e eterno da humanidade!=) Quem tem razão. Cada uma acha ue tem. No fim, vale o bom senso (nosso e dos demais) e não se deixar perder.

Pedro Gualda disse...

Muito bons, o post e os comentários.

danielffb disse...

Muito bom post!Inspirado e esclarecedor. Se o caso da propaganda é o sexismo, reforçar a ideia de mulher como um mero objeto, por que não falar das outras milhares de mensagens? Por que só essa? Talvez porque a personagem do filme usa deliberadamente e se aproveita da ideia de 'mulher objeto' em proveito próprio contra a personagem masculina,espertamente fazendo o homem de bobo, não pode? Ih esqueci! mulher objeto tem que ser burra, se for burra pode...

Lótus disse...

Guilherme,
“Laranja Mecânica” é cinema e não pode ser comparado a uma concessão pública. Entendo seu ponto de vista, mas se considerarmos o contexto em que toda a sociedade realiza um esforço conjunto para melhorar a educação pública, é inadmissível a postura da mídia que chega a transmitir em novela de horário nobre estudantes com uniforme da rede pública dançando funk. Não dá, é um retrocesso, não há espaço para apoiar isso, se a gente não condenar quem o fará, os estudantes da rede pública??

Paulodaluzmoreira disse...

Muito importante o alerta contra o puritanismo que mobiliza certas críticas culturais, mas com relação às "censuras" feitas ao tal humorista, acho impressionante o número de pessoas na internet que são "contra qualquer tipo de censura". Como se toda a censura fosse necessariamente patrocinada pelo governo. Ninguém considera, por exemplo, as restrições econômicas à livre expressão que controlam com mão de ferro o acesso às salas de cinema e à televisão no mundo todo. E há que lembrar também que a auto-censura é um princípio fundamental da vida em comunidade. Se vejo minha vizinha sair de casa e acho o carro dela horrível, tenho que ser capaz de me conter e não dizer nada a ela. Algumas pessoas por aí parece que têm incontinência verbal e depois não querem nem pegar o paninho para limpar a sujeira que fizeram fora do vaso (que aliás, não por acaso, também é conhecido por privada). É meu direito criticar o mal gosto da minha vizinha com na minha vida privada. Aliás, no aconchego do meu vaso e com a porta trancada eu tenho direito até de ser racista, machista e escroto. Da porta de casa para fora ou conectado à internet, a coisa obviamente muda de figura. Por favor, lembrem-se do óbvio: facebook ou blogue ou Twitter = meio-da-rua. No meio da rua, fraldas geriátricas verbais não são censura, meus caros: são requisito obrigatório para quem não sabe ainda a diferença entre o banheiro e a sala de visita.

miguel disse...

Paulo, A-DO-REI essa comparação entre "o banheiro e a sala de visita". Acho que é mais ou menos por aí mesmo. E para quem "pensa" que censura é sinônimo de governo(s), principalmente de esquerda, tente fazer comentários no espaço para discussões da Folha Online. Até a palavra BUNDA, se você não escrever BUNDHA, BUND@, BUN-DA etc, etc NÃO É PUBLICADA! Quanto ao cinema e à TV, disse tudo! Tem muita DITADURA por aí camuflada de "democracia"! Claro que o assunto poderia render muito mais linhas, mas eu ando meio "cansado" de tudo isso. Deve ser o peso dos cincoENTA!

miguel disse...

Corrigindo: para quem pensa que censura SÓ é sinônimo de governo(s). Ou melhor, DESgovernos.