segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A Síria através do espelho



Por Pepe Escobar, no Asia Times

“O drama atual da Síria está longe da costumeira bobagem ‘mocinhos versus bandidos’ de Hollywood. A suspensão da visita dos observadores da Liga Árabe, o duplo veto da Rússia e da China no Conselho de Segurança da ONU, o aumento da violência, especialmente em Homs e alguns subúrbios de Damasco: tudo confirma os temores generalizados no mundo em desenvolvimento de uma insurreição armada apoiada pelo Ocidente tentando reproduzir o caos na Líbia – um país ‘liberto’, agora dirigido por milícias fortemente armadas. Caso a Síria escorregue para uma guerra civil, desencadeará uma conflagração regional ainda mais horrível.

Eis uma tentativa de enxergar através da névoa.

1. Por que o regime de Bashar Assad não caiu?

Porque a maioria da população síria ainda o apóia (55%, segundo uma sondagem de meados de dezembro financiada pela Fundação Qatar).

Assad pode contar com o exército (não há deserções nas fileiras superiores), a elite empresarial e a classe média nas principais cidades (Damasco e Aleppo), os sunitas seculares e todas as minorias – dos cristãos aos curdos e drusos. Mesmo os sírios favoráveis à mudança de regime recusam as sanções do Ocidente e os bombardeios humanitários no estilo da Organização Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

2. Assad está ‘isolado’?

Por mais que a secretária de Estado Hillary Clinton deseje, e que a Casa Branca sublinhe que ‘Assad deve interromper sua campanha de crimes e matanças contra seu próprio povo’ e ‘se afastar’ – não, ele não está isolado. Os membros da ‘comunidade internacional’ defensores da mudança de regime na Síria são o CCG/OTAN (Conselho de Cooperação do Golfo da OTAN) – ou, para ser realmente específico, Washington, Londres e Paris e os xeiques do Golfo Pérsico (marionetes banhados de óleo, a maioria da Casa de Saud e do Qatar).

A Turquia faz um jogo ambivalente: hospeda o comando e o centro de controle da OTAN na província de Hatay, perto da fronteira síria, e ao mesmo tempo oferece exílio para Assad. Até Israel prefere o perigo que conhece a um imprevisível regime hostil pós-Assad liderado pela Irmandade Muçulmana.

Assad é apoiado pelo Irã, pelo governo de Bagdá (o Iraque recusou-se a aprovar as sanções), pelo Líbano (idem) e acima de tudo pela Rússia (que não quer perder a base naval de Tartus) e por sua parceira comercial, a China. Isto significa que a economia da Síria não será sufocada (aliás, o país está acostumado à vida sob sanções e não tem que se preocupar com dívidas). O grupo dos BRICS é inflexível: a crise síria tem que ser resolvida apenas pelos próprios sírios.

3. Qual é o jogo da oposição?

O Conselho Nacional Sírio (CNS), conduzido do exílio em Paris por Barhoun Galyan, alega representar todas as forças da oposição. Dentro da Síria, sua credibilidade é duvidosa. O CNS é afiliado ao Exército Sírio de Libertação (ESL), composto de sunitas desertores, mas fragmenta-se em gangues armadas, algumas infiltradas por mercenários dos países do Golfo. Mesmo o relatório da Liga Árabe teve que reconhecer que o ESL está matando civis e membros das forças de segurança e bombardeando edifícios, trens e gasodutos.

A oposição armada não tem um comando central; é essencialmente regionalizada, e não possui armas pesadas. A oposição civil é dividida e não tem qualquer programa político, exceto o lema ‘o povo quer a queda do regime’, roubado da Praça Tahrir.

4. Como estão divididos os próprios sírios?

Aqueles que apóiam o regime vêem uma conspiração sionista/americana – com a Turquia e partes da Europa como coadjuvantes – para dividir a Síria. E eles vêem a gangue ‘terrorista’ armada – infiltrada por estrangeiros – como a única responsável pela violência.

Os dissidentes e a oposição civil fragmentada sempre foram pacíficos e desarmados. Então começaram a receber proteção dos desertores militares, que trouxeram suas armas leves consigo. Todos descartam a versão governamental dos eventos, acusando-a de pura propaganda. Para eles, os verdadeiros ‘terroristas armados’ são os sabbiha – bandos assassinos paramilitares pagos pelo governo. Sabbiha (que significa ‘fantasmas’) são essencialmente descritos como alauítas, cristãos e drusos, adultos mas também adolescentes, óculos escuros esportivos, tênis brancos e braçadeiras coloridas, armados com facas e paus, e usando nomes falsos entre eles; os líderes são tipos musculosos dirigindo Mercedes pretos.

Mesmo os movimentos de massa estão em conflito. Os protestos (‘muzaharat’) foram confrontados pelo regime com procissões (‘masirat’). Não está claro se as pessoas que se juntaram a eles eram funcionários públicos constrangidos a isso ou se foram movidas por uma decisão espontânea. A mídia estatal síria mostra os manifestantes como agentes provocadores ou mercenários, e prontamente descarta a insatisfação daqueles que vivem sob um Estado policial sem liberdade política.

Um fator extra de divisão é que o número de mais de 5.000 pessoas mortas (até agora) calculado pela ONU não distingue as vítimas oposicionistas e as favoráveis ao regime, e simplesmente ignora os mais de 2.000 soldados mortos do exército sírio (seus funerais aparecem na TV estatal praticamente todos os dias).

5. O que os cristãos pensam sobre tudo isso?

O Ocidente cristão – que adorava fazer compras baratas no mercado (‘souq’) de Damasco – deveria prestar atenção à forma como os cristãos sírios vêem os protestos. Eles temem que os sunitas no poder reprimam as minorias (não apenas os próprios cristãos, mas também os drusos e os alauítas). Eles vêem, na maioria sunita, fanáticos islâmicos ‘ignorantes’ e ‘atrasados’, sem a menor idéia sobre democracia, sobre direitos humanos ou sobre um caminho lento e negociado para a democracia.

Este grupo analfabeto, segundo eles, vive na periferia, não tem nenhum respeito pela (ou entendimento da) vida na cidade grande, apóia a violência causada por gangues armadas e busca um Estado islâmico (a propósito, é essencialmente o que a Casa de Saud quer para a Síria). Os sunitas seculares, por sua vez, criticam os cristãos, ressaltando que a maioria dos sunitas é formada por empresários, investidores e liberais – e certamente não querem um Estado islâmico. Deve ser enfatizado que a oposição é ‘trans-confessional’ – ou seja, inclui cristãos e até mesmo alauítas.

6. Qual é a estratégia ocidental?

Borzou Daragahi, do Financial Times, acaba de confirmar que as milícias em Misrata (Líbia), anunciaram as mortes de três mercenários líbios. Estes quadros do Conselho Nacional de Transição desembarcaram na Síria – juntamente com armas roubadas de armazéns de Khadafi – num avião de carga da OTAN.

Há meses, como a página do Asia Times informou, forças especiais francesas e britânicas treinam combatentes em Iskenderun, no sul da Turquia. A CIA colabora com inteligência e comunicações.

O ESL utiliza a ultraporosa fronteira sírio-turca à vontade. A Turquia construiu vários campos de refugiados, e Ancara hospeda os líderes tanto do CNS quanto do ESL. Há também o front jordaniano – a conexão com a cidade de Daraa, majoritariamente islâmica e retrógrada. Mas a fronteira sírio-jordaniana está infestada de minas e fortemente patrulhada; isso implica um desvio de 200 quilômetros de extensão no meio do deserto.

Acima de tudo, os soldados do ESL vão e voltam livremente do Líbano. A rota de contrabando privilegiado parte do norte do vale do Bekaa, no Líbano, rumo aos redutos da oposição, Homs e Hama, cidades de maioria sunita. Há outra rota a partir do vale do Bekaa em direção ao sul, para os subúrbios de Damasco (o que explica como ambos os redutos são abastecidos). Mas a coisa toda é muito perigosa, porque o Hezbollah, aliado sírio, é muito forte no vale do Bekaa.

7. Quem está ganhando?

Assad prometeu, mais uma vez, nesta terça-feira, ao ministro russo Sergei Lavrov, que haverá uma nova constituição e eleições nacionais no próximo verão. Sincera ou não, é uma tentativa de reforma.

No entanto, os habituais ‘funcionários anônimos do governo’ americano já vazaram para a CNN que a Casa Branca pediu ao Pentágono cenários simulados para uma intervenção militar direta dos EUA em favor dos rebeldes. Portanto, uma intervenção da OTAN atravessando a ONU permanece como sólida possibilidade; uma operação clandestina que se possa jogar na conta do regime Assad seria um perfeito casus belli.

8. E a conexão Síria-Irã?

A Síria é crucial para a esfera de influência do Irã no sudoeste da Ásia – o flanco oriental da nação árabe. Rússia e China querem manter o status quo, porque ele implica um balanço de forças regionais que reduz a hegemonia americana. Para a China, o fornecimento ininterrupto de petróleo e gás iraniano é uma questão extrema de segurança nacional. Ademais, se os EUA estiverem de mãos atadas no Oriente Médio, a tão propalada intervenção da administração Obama e do Pentágono na Ásia, especialmente no Mar da China Meridional, levará muito mais tempo para ocorrer.

O núcleo das elites de Washington vê a mudança de regime na Síria como uma maneira crucial de ferir o Irã. Portanto isso vai muito além da Síria. Trata-se de quebrar o regime iraniano (que não é uma satrapia ocidental), garantir os fluxos de energia do Oriente Médio para o Ocidente, manter o aperto sobre o CCG e sobre a intersecção entre os mundos árabe e persa e preservar o petrodólar. O jogo Síria-Irã é uma batalha titânica do CCG para expulsar Rússia e China do Oriente Médio. Sob os gritos e golpes dos chacais e das hienas de guerra, a Doutrina de Dominação de Espectro Total (‘Full Spectrum Dominance’) do Pentágono está mais viva do que nunca.”

No texto original, em inglês, o título é "Syria through a glass, darkly", que remete à frase bíblica (1 Coríntios 13:12) "Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face".

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