segunda-feira, 4 de junho de 2012

Carta a Juca Kfouri


Publicado no Amálgama

Prezado Juca,

Tento decifrar os rótulos pejorativos que você anexa ao Campeonato Paulista e só consigo entendê-los como sintoma de algum ódio reprimido aos clubes do interior. Não imagino que outra nefasta particularidade explicaria apenas os estaduais merecerem críticas tão equivocadas e injustas. Por isso, atingido no orgulho de pontepretano brioso, dirijo-lhe esta humilde contestação.

Imoralidades diversas, oportunismo eleitoral e abuso de bens estatais são corriqueiros no universo futebolístico, e agravam-se na medida em que aumenta o poder financeiro dos envolvidos. Também a mediocridade técnica ultrapassa bandeiras e raízes, considerando o nível do futebol brasileiro em geral. Segundo tal critério, deveríamos chamar o torneio nacional de “Brasileirinho”, em referência aos longos meses de pasmaceira suportados até que os mesmos clubes mais ricos terminem nas melhores posições. Ademais, se os atletas dos rincões fossem inferiores ao padrão dominante, não comporiam os milionários elencos sediados nas capitais.

Um preconceito muito em voga, o suposto desinteresse das platéias interioranas, pede primeiro um contraponto matemático. Apesar de todo o glamour da Série A, as maiores torcidas do país são incapazes de ultrapassar a média de quinze mil pagantes por jogo. O peso desse público num conjunto urbano de vários milhões de habitantes não alcança a mesma proporção observada nas cidades menores.

Mas quem disse que a bilheteria deve constituir um objetivo central do esporte? É evidente que a natureza capitalista dos clubes tem certos limites, pois no mundo cruel dos negócios as empresas mal administradas desaparecem muito antes que suas dívidas cheguem a centenas de milhões de reais. A transcendência sócio-cultural do futebol, por definição, está acima do gosto hegemônico e das modas passageiras. Os mais restritos círculos religiosos, criativos, étnicos ou políticos merecem tratamento honroso e igualitário, mas os futebolísticos precisam ser legitimados por fatores mercadológicos?

Repudio sua afirmação de que os interioranos vampirizam a “elite”, pois ocorre justamente o contrário. Os clubes poderosos sempre exploraram os menos prestigiados, cooptando sua mão-de-obra capacitada e barata (depois lucrando com ela), desviando recursos a que tinham direito e usando a conseqüente penúria para sufocá-los nos viciados bastidores das federações. Espelhando um notório mecanismo da geopolítica, as tradições dos “grandes” foram construídas com o sacrifício histórico dos “pequenos”.

Os analistas esportivos das metrópoles, eternos cúmplices da pilhagem, agora defendem que as agremiações coadjuvantes sumam dos últimos torneios sérios de que ainda participam. Todos sabem que o golpe aniquilaria os excluídos, mas disfarçam a ânsia genocida com placebos retóricos do tipo fundos emergenciais e regulamentos anódinos. Tentam, assim, fazer os torcedores dos “grandes” que vivem nas cidades menores pensarem que a agonia dos times locais só atinge quem sofre por eles. Não se reconhecendo vítimas desse menosprezo e incapazes de antever seus graves efeitos colaterais, as platéias distantes ignoram que são usadas pelo marketing da homogeneidade, que visa apenas lucrar à custa da audiência massificada.

Algo muito importante, que ninguém parece notar, é o prejuízo causado pela decadência do interior a todo o futebol nacional, inclusive os poderosos “favoritos” da mídia. Os recentes fracassos da seleção e dos representantes brasileiros em disputas internacionais refletem a pobreza de uma estrutura viciada nas glórias fáceis e imediatas dos seus protagonistas. Beneficiados pela miséria dos adversários regionais e iludidos com a equivalência dos concorrentes diretos, os times vitoriosos se acomodam a uma superioridade artificial, que só faz sentido num ambiente esportivo menos qualificado.

Suponhamos que minha leitura esteja errada, caríssimo Juca, e que você queira realmente lutar pela dignidade dos “pequenos”. Sugiro-lhe então liderar uma campanha para que as verbas televisivas de qualquer campeonato sejam repartidas igualmente por todos os competidores. Aposto que não faltaria base constitucional para reivindicação dessa natureza. E que tal defender também que a insossa e onerosa Copa do Brasil passe a abrigar os melhores de cada estado que não disputam a Série A, dando vagas na Sul-Americana ao campeão e ao vice? O calendário da “elite” ficaria enxuto e dinâmico, o prestígio dos estaduais aumentaria, os “pequenos” investiriam nas categorias de base e o mercado conheceria milhares de bons profissionais que hoje vivem no ostracismo.

Se tais idéias soam alucinógenas é porque de fato salvariam os clubes menores. Porque a cúpula do futebol, mídia inclusa, tem horror de um cenário com torneios imprevisíveis e dezenas de times competitivos roubando os triunfos, a visibilidade e os lucros do cartel predominante. É essa arrogância monopolista que gera a depreciação da única oportunidade que têm os desfavorecidos de conhecer algum sucesso, mesmo “fortuito” e “circunstancial”, para usar seus discutíveis adjetivos. Não por acaso, os ataques aos estaduais costumam acompanhar elogios ao tendencioso sistema de pontos corridos, fórmula de manipulação classificatória baseada no privilégio econômico.

Finalizo deixando um apelo para que você repense a mania de chamar de cegos e provincianos os pontos-de-vista discordantes. Não há nada mais provinciano que louvar a supremacia de apenas quatro times num estado com população equivalente à de países europeus. Só bairristas obtusos ignoram a imensa riqueza regional brasileira, querendo reduzi-la a um punhado de referências construídas e disseminadas pela imprensa das capitais e por seus anunciantes. Os inimigos de tamanho empobrecimento adotam visão contrária, que respeita a diversidade, a integração e o equilíbrio de forças.

Embora desunidos e submissos, os clubes interioranos ainda podem escapar da morte que seus detratores anunciam. Quando parlamentares, governantes e dirigentes conhecerem as dimensões da tragédia, imediatamente buscarão evitá-la. Mas para tanto é necessário que a crônica esportiva deixe as paixões na arquibancada e trate de fazer jornalismo, para variar um pouco.

Deixo-lhe um abraço de admirador.

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