Publicado
na página do Le Monde Diplomatique Brasil
O
último processo eleitoral brasileiro foi marcado pela continuidade. A maioria absoluta
dos deputados federais e estaduais reelegeu-se. Metade dos senadores em fim
de mandato alcançou o objetivo. Dos dezoito governadores que tentaram
permanecer no cargo, onze conseguiram. Oitenta milhões de votantes endossaram a
polarização entre PT e PSDB, rejeitando as candidaturas presidenciais
alternativas. Cerca de 54 milhões optaram depois pela via situacionista, dando-lhe
a quarta vitória seguida.
Os
resultados frustraram as expectativas de renovação acima das médias históricas e, principalmente, de uma derrota do governo federal. Isso aconteceu porque o ímpeto
de mudança que teria dominado o país era mais um desejo dos comentaristas do
que um diagnóstico preciso. Em outras palavras, a perspectiva de transformação do
cenário político baseou-se na projeção de anseios setorizados e teve natureza
essencialmente propagandística.
O
equívoco nasceu nos consensos do campo midiático sobre as manifestações populares
do ano passado. Ansiosos para domesticar a perigosa simbologia dos protestos e
sua polêmica pauta original, certos observadores apressaram-se em acomodá-los sob
um denominador comum. O suposto desejo coletivo de mudança foi então adotado
como fator identitário e unificador do fenômeno heterogêneo e caótico das
manifestações.
Essa
leitura também ajudava a neutralizar ideologicamente a militância. Uma reação generalizada
“contra tudo que está aí” dispensava plataformas e condicionantes sociais ou
partidárias. Era a essência positiva de qualquer atitude rebelde, inclusive quando
os seus argumentos se mostravam rasteiros, como nas falácias sobre os gastos
com a Copa do Mundo. O mesmo valia para a ilusão “tática” dos blocos mascarados.
Logo
a mídia passou a instrumentalizar a revolta com fins eleitorais. A condenação
do radicalismo das ruas serviu para reforçar sua antítese pacífica e ordeira, a
mudança pelo voto. O mantra apaziguador
“a resposta será dada nas urnas em outubro” virou moda na imprensa corporativa,
adquirindo uma tonalidade pedagógica de forte viés autoritário.
Claro
que todos previam a influência desse discurso na disputa presidencial vindoura,
fortemente plebiscitária e polarizada. A naturalização do mote novidadeiro disseminava
e fortalecia o apelo de qualquer candidatura oposicionista que se tornasse
competitiva. E conferia uma fachada isenta ao antipetismo preponderante nos
veículos.
A
jogada tinha algum respaldo histórico. Nas pesquisas de 1989, por exemplo, a mudança
política foi o motivo mais citado para a decisão final de voto, particularmente
a dos eleitores do vitorioso Fernando Collor. (1) Em 2002, a metáfora da
esperança brandida por Luiz Inácio da Silva utilizou apelo semelhante. (2)
Ao
longo de 2014, contudo, a novidade sucumbiu à vulgarização midiática. Repetido nos
slogans de Dilma Rousseff (“Muda Mais”), Aécio Neves (“Muda Brasil”) e Marina
Silva (“Coragem pra mudar o Brasil”), o conceito diluiu-se até perder o
sentido. Serviu tanto para o governo acenar com melhorias quanto para a
oposição amenizar seus elogios aos programas federais. Virou um rótulo
camaleônico a serviço do oportunismo.
Parece
inegável que as narrativas mudancistas do marketing eleitoral dialogavam com efetivas
demandas da sociedade. Mas as versões jornalísticas desses anseios tomavam-nos
como parte do legado subjetivo dos protestos, e não como suas causas, exagerando
a possível influência deles sobre as urnas. Se as manifestações escancaravam a falência do sistema representativo, dificilmente prenunciariam uma guinada institucional
que dependesse da própria estrutura sufragista caduca.
Os
prognósticos de renovação eleitoral falharam ao simplificar demais as motivações
do voto no país. Fizeram de um fenômeno socioculturalmente delimitado um microcosmo
representativo da maioria, ignoraram os enormes contingentes populares que não
aderiram à febre reivindicatória e desconsideraram os estímulos morais e
pragmáticos do chamado “eleitor não-racional”, decisivo em qualquer disputa. (3)
Misturando
estratégia publicitária com análise conjuntural equivocada, a apologia da
mudança pelo voto iludiu os círculos oposicionistas a ponto de comprometê-los
moralmente com a fantasia redentora. O espírito vingativo que se apossou dos
derrotados é consequência direta dessa perplexidade rancorosa contra os
eleitores que baldaram suas previsões.
(1)
Carreirão, Yan de Souza. “A decisão do voto nas eleições presidenciais brasileiras”. Florianópolis: Ed. Da UFSC; Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002, p. 81-86.(2)
RUBIM, Antonio Albino Canelas. As imagens de Lula presidente, 2003. in FAUSTO NETO, Antonio (Org.s) Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Porto Alegre: Hacker Editores / Unisinos, 2003. p.43.
(3)
Silveira, Flavio Eduardo. “A decisão do voto no Brasil”. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 182-190.
Um comentário:
Excelente blog parabéns!
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