Publicado no jornal Correio Popular
O triunfo das ações afirmativas de viés étnico-racial
ocorreu em parte graças aos seus próprios adversários. Desde que eles incorporaram
certas mistificações do repertório conservador (especialmente a ilusão da
democracia racial brasileira) e desde que a imprensa corporativa moldou o
debate segundo uma estratégia tola e oportunista de antagonismo ao governo
federal, a causa cotista adquiriu uma relevância que sobrepôs os méritos
intrínsecos da ideia.
Mas as cotas raciais não se tornam incontroversas
apenas porque nos satisfazemos com a derrota do obscurantismo. Em situações de
maior equilíbrio ideológico, poderíamos refletir sobre o destino dos estudantes
pobres não beneficiados pelo mecanismo, as esferas legítimas para a construção
de programas estatais de vasto alcance, as conseqüências de baseá-los na cor de
pele, na genealogia ou mesmo na reparação de violências ancestrais e o efetivo
papel das ações inclusivas no combate ao preconceito.
Muitos autores favoráveis às cotas fornecem
respostas interessantes a esses dilemas. Por outro lado, nem todos os argumentos
contrários partem de charlatões brancos e desonestos, mesmo quando se parecem
com os proferidos pelos charlatões brancos e desonestos que imbecilizam a
controvérsia. Porque ninguém precisa recorrer à estupidez de negar que a
desigualdade está marcada racialmente para sugerir soluções que superem o caráter racial dessa desigualdade.
Acontece que o âmbito formulador das ações
afirmativas foi contaminado pela fantasia de que o mundo se divide entre dois coletivos
homogêneos, o dos sábios visionários defensores das cotas e o dos racistas
ignorantes que as odeiam. Quem não quer fingir que pertence ao primeiro grupo e
nem possui bile para gastar evitando a pecha do segundo prefere se afastar do
debate.
Ficamos então condenados aos programas públicos
que essa visão bipolar é capaz de construir. E nos satisfazemos com os
inegáveis avanços sociais resultantes, mesmo que tenham origem pouco
democrática. Isso talvez sirva em demandas momentâneas, mas é insuficiente para
um projeto nacional duradouro e inclusivo de verdade.
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