O repertório machista que atravessa algumas
agendas políticas ajuda a fortalecê-las transferindo as fórmulas do preconceito
para esferas de análise onde a questão de gênero parece irrelevante. Isso
ocorre com Dilma Rousseff (além do desrespeito aberto que ela sempre sofreu)
nos debates sobre o impeachment.
Uma das mais graves e disseminadas falácias sobre
o estupro reside na presunção de “merecimento” da vítima, que teria favorecido ou
provocado a agressão. O ataque perde então a essência bárbara e passa ser
compreensível, mero desdobramento de atitudes que a mulher poderia evitar se
quisesse.
Argumento similar ressurge em certas manifestações
de apoio à deposição de Dilma. Para digerir a escandalosa ilegalidade do
processo e a imoralidade dos seus líderes, os defensores do arbítrio precisam
jogá-las na conta da própria mandatária. Apesar de tudo, ela “mereceu” o ataque
dos parlamentares ignaros.
Assim, os supostos defeitos pessoais de Dilma
(arrogância, incompetência, falsidade) amenizam a ofensa jurídica do
impeachment. A violação constitucional deixa de ser um golpe inescrupuloso,
transformando-se em mera consequência, algo normal no sistema de relações do
mundo político. A culpa é da vítima, que provocou sua tragédia.
Tais reflexões jamais esgotariam um tema sério e complexo
como o da agressão sexual. A intenção aqui se resume a mostrar que o hábito de
responsabilização da vítima extrapola a tolerância perante o estupro, servindo de
instrumento para legitimar violências de outra ordem, certamente menos lesivas,
mas nem por isso aceitáveis.
O fato de essa transposição soar natural e
inofensiva para muitas pessoas solidárias com as mulheres que sofrem agressões
físicas não deixa de simbolizar uma derrota no combate à impunidade dos
agressores.
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