segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Reflexões pragmáticas


Publicado na revista Caros Amigos em agosto de 2010.

O estigma que associa o pragmatismo político à falta de escrúpulos é recente e malicioso. Enquanto as esquerdas dogmáticas viviam encurraladas entre a negação do sistema sufragista e os constrangimentos do socialismo real, a prática ilustrava a habilidade estratégica do conservadorismo político. Bastou os partidos progressistas conquistarem vitórias eleitorais importantes e o termo passou a englobar certa maleabilidade ética, associada popularmente a uma falsa concepção de “maquiavelismo”.

Já no mundo esportivo, a objetividade sem floreios revela a frieza e a disciplina dos combatentes invencíveis. Atletas pragmáticos têm vocação para o triunfo. A superação pessoal e a busca incessante da vitória demonstram respeito pelo público e até pelos adversários. Simbolizam, acima de jargões idealistas e consolos ocasionais, a própria essência da competição.

Curiosamente, o futebol concilia as duas concepções antagônicas. Isso acontece porque ele está entre as raras modalidades que permitem o êxito do rival menos capaz, alimentando uma ilusória distinção entre a “beleza” do jogo e o resultado final. A índole de torcedor imiscui-se no comportamento do militante. A face lúdica da utopia e o espetáculo do insucesso honroso desobrigam viabilidades eleitorais. Por outro lado, o cinismo velhaco (“rouba mas faz”) apropria-se do louvor à malandragem e da sanha competitiva para justificar imoralidades. O erro do juiz faz parte do jogo, certo?

Em ambos os contextos, porém, a dicotomia soa irrelevante. A otimização de esforços e recursos com base na experiência permeia qualquer atividade humana produtiva. Na democracia liberal, é inerente ao próprio espírito reformista. Mesmo as fantasias revolucionárias mais implausíveis pressupõem alguma viabilidade material. Caso contrário, mergulham no dogmatismo estéril.

sábado, 28 de agosto de 2010

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Uma tarde em 2002


O episódio em que Lula foi desrespeitado por Otávio Frias Filho na sede da Folha de São Paulo é grave, marcante e exemplar. Toda a ideologia demofóbica das elites paulistanas está concentrada naquelas poucas frases, que também explicam e antecipam os oito anos de propaganda negativa que o jornal empreenderia para prejudicar o petista.

Clóvis Rossi (aquele dos “hidrófobos do lulopetismo”), mesmo defendendo o chefe, admitiu seus disparates. Tentou apenas dar um aspecto “inocente” ao preconceito de Otavinho. Mas prefiro o testemunho de Ricardo Kotscho, que também estava lá. Nada pessoal, viu, seu Clóvis? É só uma questão de credibilidade.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Só mesmo na Tucanolândia paulista



Em plena disputa eleitoral, há novas praças de pedágio espalhadas por todo o Estado, prontas para funcionar. Talvez nem precisem esperar até as eleições.

Dadas as proporções da dinheirama, o escândalo das tarifas deveria ganhar repercussão nacional. Planetária. A continuidade de tamanho acinte ilustra uma putrefação institucional generalizada, que envolve a imprensa, o Ministério Público, a Assembléia Legislativa e até mesmo os partidos oposicionistas.

Por que a campanha de Aloizio Mercadante continua incapaz de mobilizar o eleitorado contra esse disparate? “É que a população aprova as concessões rodoviárias”, dizem alguns. Mas com base em quê? “No Datafolha.” Ah, bom.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Falácias contra a maconha


Ronaldo Ramos Laranjeira, professor da Unifesp e coordenador do Instituto Nacional de Políticas sobre Álcool e Drogas, e Ana Cecilia Petta Marques, pesquisadora do mesmo Inpad/CNPQ, atacam a legalização da maconha. O último artigo chama-se “Lobby da maconha” e saiu na Folha. Os argumentos são batidos, mas reúnem as principais deturpações proibicionistas em voga. Elas são citadas abaixo, em itálico, seguidas de meus comentários.

1. “Maconha faz mal”: irrelevante. Toda substância pode causar dano à saúde. Os horrores do câncer, do infarto ou do vício jamais serviriam para proibir legumes tratados com agrotóxicos, frituras ou remédios que provocam dependência. O argumento da saúde pública tem a mesma duração de um copo de cachaça.

2. “Efeito terapêutico não é comprovado”: mentira. Procurem os trabalhos do Dr. Raphael Mechoulam, da Universidade Hebraica de Jerusalém. Depois sigam suas indicações por experiências semelhantes no Canadá, nos EUA e em toda a Europa. Mas, afinal, acadêmicos não deveriam possuir esse tipo de informação?

3. Efeito terapêutico é obrigatório: mentira. A descriminalização da maconha é endossada por inúmeros argumentos, de várias disciplinas. O enfoque no uso medicinal da erva é armadilha retórica para limitar esses argumentos a apenas um, frágil e sujeito a endossos de “autoridades competentes” que têm interesses diretos na questão. Nenhuma substância legalizada precisa ser obrigatoriamente benéfica à saúde.

4. “Droga insegura”: alguém conhece droga segura? Quem leva o assunto a sério sabe que existem dezenas de maneiras de minimizar os danos da cannabis. É possível inalar fumaça fria, gerada por plantas controladas, com baixo teor de resíduos tóxicos. E até saborear bolos de chocolate com cobertura de marshmallow...

5. “Nossa legislação já é liberal”: mentira. É tão repressiva e obsoleta que os brasileiros são impedidos pelo próprio Judiciário de questioná-la publicamente. Ou são imediatamente chamados de lobistas. Se alguém quiser conhecer leis avançadas, procure na Holanda, na Espanha, em Portugal, no Canadá e na Argentina, onde se permite o cultivo doméstico de maconha.

6. “A legalização disseminaria o uso”: mentira. Os governos dos países acima possuem dados bastante claros a respeito, disponíveis aos nobres doutores. Desde a Lei Seca, prevalece uma lógica imutável: o consumo só aumenta onde há proibição. Também a criminalidade, a corrupção policial e a marginalização do usuário.

7. O tal “lobby”: uma tolice conspiratória. Talvez convenha a colunistas irados (como Ruy Castro) ou a governos repressores, mas não parece adequado em manifestações científicas. O único lobby atuando nesse debate é favorável ao equívoco repressivo. Seu misterioso poder de convencimento pode ser aferido pela facilidade com que certos acadêmicos se dispõem a repetir bobagens que não passam no escrutínio mais benevolente. E, já que tocaram no assunto, uma pergunta singela: quanto os laboratórios farmacêuticos deixariam de lucrar com a legalização da maconha?

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Quem é essa mulher?


Fernando de Barros e Silva e Eliane (“Gente!”) Cantanhêde repetem na Folha de hoje o novo mote da oposição contra Dilma Rousseff: acusam a candidata de ser misteriosa, imprevisível, pouco transparente. É uma atualização canhestra do “Tenho medo” que Regina Duarte professou para atiçar os ânimos udenistas da classe média.

O pendor propagandístico desses “artigos” não chega nem a ser dissimulado. Embora escritas a mil quilômetros de distância, as duas peças foram publicadas no mesmo dia, contendo visões idênticas e igualmente forçadas para um assunto no mínimo discutível. E, mágica das mágicas, incrementam uma linha de ataque já iniciada nos programas e veículos a serviço de José Serra.

Pobres diabos. Oxalá continuem nesse patamar rasteiro, pensando ser geniais, enquanto destroem as reputações e passam vergonha.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Um ano de arbítrio


A comemoração do aniversário da lei antifumo tenta fazer uso eleitoreiro dessa canetada autoritária que já nasceu para divulgar a “competência” de José Serra. A lei continua ilegal, pasmem os senhores, porque contraria outra legislação federal sobre o mesmo tema. Alguém finalmente corrigirá esse absurdo, mas o estrago será irreversível: imprensa e autoridades médicas terão aplaudido uma inconstitucionalidade. Nada mau para o espírito civilizatório paulista.

E os repressores passaram esse tempo todo iludindo o distinto público. Primeiro, ao contrário do que diz a propaganda, é mentira que não existem fumódromos seguros. Além disso, a milícia de Serra espalha falsas restrições e ameaças, levando muitos proprietários a tentar proibir o cigarro até mesmo nas vias públicas diante dos estabelecimentos.

É fácil tampar essa nudez escandalosa com jargões na linha “os limites do seu direito”, “qualidade do ar”, “a saúde do próximo” e afins. A restrição ao fumo em ambientes fechados poderia tranqüilamente embutir a legalidade, o bom-senso e a transparência de métodos e princípios. Se não o faz, é porque alguém ali possui motivações suficientemente vexatórias.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

“Córtex”

O conto recebeu menção honrosa no Prêmio Off Flip deste ano e será depois incluído em antologia. Graças à generosa paciência da editora Ana Lima Cecílio, acaba de ser publicado pela revista Pesquisa, da Fapesp. Lá é possível lê-lo na íntegra.

sábado, 14 de agosto de 2010

“Pure”

Esta incrível colagem de cenas de filmes de ação, realizada pelo professor e cineasta Jacob Bricca, foi convidada para participar do Festival de Berlim de 2009. Uma verdadeira aula de edição.

A música é “7 vs 8”, da banda Jesus Lizard.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

“A origem”


Mesmo que levássemos em conta apenas a superfície imediata do entretenimento, o filme superaria a média industrial hollywoodiana. Nem tanto por mérito do jovem e talentoso Cristopher Nolan, mas graças ao arrojo técnico empregado para contar sua história mirabolante. Os efeitos visuais atingem um grau de ilusionismo assombroso. A edição é exemplar. Prêmios técnicos não faltarão ao filme.

Há, no entanto, um pequeno detalhe.

A música “Je ne regrette rien”, cantada por Edith Piaf, surge freqüentemente, servindo a necessidades dramáticas. Os protagonistas a utilizam como uma espécie de gatilho para retornar das viagens pelos sonhos. Depois que os inconscientes foram devidamente treinados, basta-lhes ouvi-la e todos despertam imediatamente, salvando-se de apuros eventuais.

Mas trata-se também de uma referência exterior ao próprio filme: a canção desloca nosso raciocínio da personagem-chave “Mal” para sua intérprete, a francesa Marion Cotillard. Pois é impossível não lembrar a própria Cotillard no papel de Edith Piaf, cantando exatamente “Je ne regrette rien”.

Enquanto “Mal” só existe no mundo onírico, a identificação da atriz com seus trabalhos anteriores faz sentido apenas no plano dos espectadores conscientes. A citação extrai os personagens de suas imersões pela fantasia e ao mesmo tempo nos retira de “A origem” (ou do “sonho” representado pelo filme) para devolver-nos à realidade exterior.

Se qualquer outra canção preservasse o mesmo sentido conveniente à trama (“não lamento nada”), as lucubrações acima virariam delírios absurdos. Mas a escolha dessa música, entre inúmeras possíveis, é precisa e enriquecedora demais para soar casual. E assim descobrimos a essência do código metalingüístico em sua plena realização.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

110 anos hoje


Quando alguém pensa que já viu de tudo, surge esse "Michaelquinha" para provar o alcance da criatividade alvinegra. Bom presente de aniversário.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O direito de não votar


Publicado na revista Caros Amigos em julho de 2010.

O voto obrigatório ofende os princípios democráticos. O exercício da cidadania pressupõe liberdade ampla e soberana de escolha, inclusive a de abster-se do processo eleitoral. A autonomia do indivíduo deve ser preservada com a mediação legal, jamais tolhida por ela. Impor direitos a quem os desfruta é um absurdo conceitual.

O fato de o Estado brasileiro ser pródigo nessas contradições não as torna mais aceitáveis. Os paralelos distorcidos entre o comparecimento às seções eleitorais e outros “deveres cívicos” apenas realça o caráter despótico de rotinas que, se não foram instituídas por ditaduras, nasceram de semelhante espírito. O serviço militar, por exemplo, é um arcaísmo prejudicial que não serve a comparações positivas.

Não se trata de louvar o abstencionismo, e sim de aceitá-lo como opção válida, entre tantas mais ou menos discutíveis. Ao cidadão já é permitido recusar instrumentos de atuação política, registrar votos úteis e de protesto ou até anulá-los. Sua presença física empresta uma ilusão de legitimidade ao sistema democrático, mas nem de longe o faz representativo. O sufrágio desempenhado a contragosto alimenta falsos consensos e perpetua uma fragilidade institucional perigosa, pois artificial e oportunista.

A afirmação de que o povo brasileiro não possui maturidade ou instrução para decidir revela preconceito elitista e autoritário. O voto facultativo assusta as facções hegemônicas porque transformaria a relação entre candidatos, partidos e eleitores. Para todos os efeitos, seria um mecanismo de conscientização política: mesmo a indiferença generalizada constrangeria governantes e legisladores a recompor os vínculos perdidos com a sociedade.

O plebiscito é a maneira mais pedagógica e inquestionável de resolver a questão. Não surpreende, portanto, que seus adversários o repudiem duplamente.

sábado, 7 de agosto de 2010

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Circo

Há excesso de debates eleitorais na televisão brasileira. As normas das emissoras e o treinamento dos marqueteiros deixam tudo previsível, burocrático, enfadonho.

Essa pompa republicana que os veículos só abraçam bienalmente exala um odor de exibicionismo e falsidade. Se a legislação permite inúmeros candidatos, excluir qualquer um em nome da pretensa “representatividade” é simplesmente antidemocrático.

Debate não muda voto, não informa, não gera discussões frutíferas. Sua única serventia é fornecer material para ser depois manipulado pelas diversas facções, favorecendo os respectivos apadrinhados.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Uma estratégia para Mercadante


Publicado no especial "Eleições 2010" do Amálgama.

As próximas movimentações da campanha de Aloizio Mercadante esclarecerão se ele está de fato empenhado em vencer a disputa para governador de São Paulo, ou se busca apenas fortalecer pretensões futuras (por exemplo, à prefeitura da capital). Caso planeje satisfazer as expectativas da militância, o senador dispõe de um repertório muito restrito de manobras.

Seu desafio imediato, chegar ao segundo turno, é mais difícil do que parece. Como se sabe, Geraldo Alckmin (PSDB) possui vantagens quase insuperáveis: maior tempo de propaganda no rádio e na TV, apoio dos grandes veículos de comunicação e das maiores empresas do país, imensa estrutura administrativa, ocupada há quase duas décadas por quadros peessedebistas.

Dadas as circunstâncias, a única maneira de minimizar esses trunfos nos poucos meses disponíveis seria unir esforços com a campanha de Dilma Rousseff, para benefício de ambos. Em outras palavras, trata-se de regionalizar o embate presidencial e identificar a candidatura de José Serra com a sucessão paulista.

As pesquisas apontam ampla vantagem do tucano em São Paulo, cuja densidade populacional é suficiente para influir no contexto nacional. O adiamento da definição paulista ajudaria a encerrar as disputas presidenciais já no primeiro turno. Centrando esforços no front estadual, as campanhas petistas atingiriam a máscara de bom administrador que Serra exibe no resto do país. Expondo as fraquezas da hegemonia do PSDB paulista, minariam a vantagem de Alckmin, constrangendo-o a defender (ou, mais provavelmente, atacar) os desafetos de partido.

Desunidos em São Paulo, como já estão em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, os tucanos caminhariam juntos para a derrota presidencial imediata. No segundo pleito, desgastado, Serra teria participação apenas protocolar na campanha de Alckmin. Ao mesmo tempo, Mercadante seria beneficiado pelo prestígio de Lula e Dilma.

Mas, para tanto, petistas e aliados precisam tomar a iniciativa e atacar, impondo a pauta dos debates sucessórios. Tudo que Alckmin quer agora é uma campanha propositiva e enfadonha, que anestesie o eleitor até outubro.

Temas não faltam para constrangê-lo: as atrocidades impunes da PM, a vergonha do sistema carcerário, as violências praticadas contra os menores da Fundação Casa (antiga Febem), as suspeitas no Rodoanel e no Metrô, o sucateamento do ensino público, as enchentes nas marginais paulistanas e, principalmente, os escorchantes pedágios que cercam as principais cidades do Estado. Aliás, é assombroso que alguém precise forçar a inclusão de escândalos dessas proporções na agenda eleitoral.

Impera certa mistificação no meio político em torno da chamada campanha negativa. Basta que os ataques demonstrem respeito às demandas populares para conquistar a empatia do eleitorado. Denunciar adversários e esclarecer o público não exigem necessariamente uma comunicação pesada ou repulsiva. As peças audiovisuais criadas com esse fim podem assumir inúmeros formatos, da comédia à reportagem, passando pelo drama e até pela animação.

Recursos técnicos e humanos não faltam. Mas haverá verdadeiro interesse dos personagens envolvidos?