quarta-feira, 6 de junho de 2018

Carona perigosa



As causas dos caminhoneiros são inquestionáveis. Trata-se de um governo golpista, ilegítimo e corrupto. De combustível caro demais para a oferta de matéria-prima. De uma administração criminosa na Petrobrás. Mas não precisamos negar a pertinência desses fatores para apontarmos os diversos aspectos problemáticos do movimento e do apoio que ele recebeu.

Desde o início ficou evidente o caráter ambíguo de uma "greve" que associava interesses de funcionários e patrões. Soa estranho combater a precarização com exigências que favorecem parte dos responsáveis por ela. E a lógica de transferir o ônus tributário dos acordos às próprias vítimas da escassez não coaduna com a ideia de justiça social.

Não por acaso, a vitória imediata dos protestos será negativa para a maioria dos trabalhadores brasileiros, cujos hábitos sequer retornarão à "normalidade" ruim de sempre. Os oportunistas já lucraram como nunca. O custo de vida ficou acima dos índices anteriores à crise. O corte de vagas, especialmente as informais, não será revertido tão cedo.

É difícil abordar esses problemas porque o antagonismo com Michel Temer dá ao movimento uma espécie de salvo-conduto político para suas contradições. A solidariedade acrítica leva os afoitos a idealizarem os manifestantes, transformando sua luta numa panaceia libertária que se torna benéfica à sociedade apenas porque teve respaldo popular.

O viés subversivo dos protestos parece bem menos inocente se associado à passividade das forças de segurança durante a instalação dos bloqueios e à ação incontida de saqueadores e vândalos nos centros urbanos. As mesmas autoridades que bombardeiam passeatas assistiram imóveis ao triunfo da performance antipolítica, antissindical e militarista dos caminhoneiros.

Todo evento histórico é complexo, heterogêneo, irredutível, etc. Trazer esses rótulos coringas ao debate só contribui para mergulhá-lo numa lógica adversativa que aceita qualquer coisa. A diversidade não constitui antídoto para a tendência conservadora dos motoristas, e sim um componente natural das ideologias, inclusive as antidemocráticas. Inexiste valor positivo intrínseco numa "espontaneidade" que articula milhares de pessoas através de redes digitais.

O consolo adversativo redunda num esforço para enquadrar o fenômeno em certas agendas partidárias, exigindo o recurso a diagnósticos equivocados sobre a conjuntura política do país. O mais grave deles é superestimar a derrota da direita com os protestos, associando-os a uma onda oposicionista de automático proveito para a esquerda.

As paralisações permitiram ao condomínio golpista retomar o controle da agenda nacional. A poucos meses das eleições, o governismo descobriu a fórmula para imobilizar o país, seja forçando a radicalização de quem é capaz de fazê-lo, seja disseminando uma histeria coletiva de resultados similares. A jogada provocaria o adiamento da votação, permitindo chegar o tão sonhado conciliador da direita e dando ao Regime Judicial de Exceção o prazo que lhe falta para tirar Lula da campanha, das urnas e do noticiário.

Temer é um fantoche útil no esquema. Sua impopularidade canaliza o anseio transformador da população e oferece à direita uma saída que arrefeça os ânimos no momento propício. O fantasma do salvacionismo reacionário tem o mesmo papel neutralizador. E, conscientemente ou não, os caminhoneiros fazem parte dessa aventura de desestabilização institucional que facilita a sobrevivência do golpismo.

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