segunda-feira, 30 de novembro de 2009

“Bastardos inglórios”


O prazer transborda nos filmes de Quentin Tarantino. É a satisfação sensorial, fetichista, mas também ligada ao próprio fazer cinematográfico, compartilhado com o espectador, levado a tolerar crueldades que repudia racionalmente. Deste choque nasce mais sedução.

“Bastardos” radicaliza o projeto laudatório esboçado em obras anteriores, levando as homenagens ao nível da compilação: são centenas de tomadas reproduzindo imagens célebres do cinema clássico, Ford, Hawks, Lang, os repisados faroestes italianos, obras menores que o cinemaníaco reconhece com alguma dificuldade. Não à toa, a fotografia coube ao mestre Robert Richardson, que realizou um espetacular mosaico de violência em “Assassinos por natureza”, de Oliver Stone (1994).

O pastiche, referencial por definição, não é estilo em si. Mas pode virar uma espécie de assinatura, o que dá quase na mesma nos baixos padrões criativos hollywoodianos. Nesse aspecto, Tarantino é exemplar do cinema estadunidense contemporâneo, perdido entre o risco e a auto-referência, criando novidades com material reciclado. Mas podemos considerá-lo realmente o “autor” dessas obras, feitas com imagens alheias? Ou, por outro lado, ninguém "possui" imagem alguma?

O diretor esbanja seu inegável talento para o trabalho com atores. O coronel Landa de Christoph Waltz é das maiores criações cômicas em qualquer tempo – houvesse qualquer justiça no Oscar, a premiação repetiria o reconhecimento de Cannes. Mas todo o ótimo elenco proporciona deleite particular, com especial destaque para o Göebbels de Sylvester Groth.

Há também os diálogos poliglotas, a inversão de papéis históricos, as metáforas e alusões. E então penetramos num enredo de significados obscuros que possuem nexos muito particulares e talvez escapem ao próprio Tarantino.

sábado, 28 de novembro de 2009

O jeitinho $ de negociar

O Ministério da Educação questiona o cumprimento dos compromissos assumidos pelo Sistema S. Recentemente, talvez pela primeira vez, os nobres empresários foram instados a explicar a destinação das fortunas que amealham, compulsoriamente, dos empregadores nacionais.

Tão bondosos e justos, tão necessários para a formação profissional dos brasileiros, os manganos rapidamente aceitaram um acordo estabelecendo metas de vagas gratuitas – e, em troca, ninguém escarafunchava os dutos obscuros da dinheirama. Agora se percebe que eles ainda não se acostumaram às contrapartidas do Estado democrático.

Em breve retornarão as campanhas milionárias para promover a imprescindibilidade do Sistema e as críticas dos colunistas à ação “intervencionista” do governo.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Pagando para gastar


O estacionamento pago em lojas, shopping centers e supermercados deveria ser simplesmente proibido. Onde já se viu pagar a particulares por um serviço público e por uma responsabilidade que cabe exatamente àqueles que lucram com nossa presença?

Entretanto, já que o elitizado Judiciário tolera esse absurdo, condicionar a cobrança ao valor gasto pelo cliente representa, sim, interferência indevida em assunto privado. Que critérios serviram para o cálculo? Quanto lucra uma terceirizada que presta esse serviço? E ela tem obrigação de divulgar suas planilhas?

O estacionamento pago, além da tunga evidente, possui uma utilidade segregacionista que todos conhecem e secretamente comemoram. O povaréu fica relegado aos centros urbanos depreciados, enquanto os ricos se escondem nesses castelos arejados de bem-estar sorridente.

É interessante verificar que a Justiça e o governo Serra repudiam a gratuidade com o mesmo argumento que os donos de bares tentaram usar contra a inconstitucional lei antifumo. Mas, sabemos, Serra pode tudo.

No fundo, o aborto de iniciativas regulatórias serve apenas para corroborar uma situação anterior, em si questionável: fingem mexer na cobrança, recuam e a cobrança permanece, mais forte que nunca.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Mas o poeta vetou

"Caro Guilherme,

Não postei o seu comentário abaixo no meu blog porque tenho por regra não publicar os seguintes tipos de comentários:

1) Os que violem as cláusulas do contrato com a Blogspot, expondo o blog a ser fechado;

2) Os que sejam inteiramente irrelevantes ao texto em questão;

3) Os que, não passando de insultos ou deboche, sejam inteiramente destituídos de argumentos;

4) No caso de textos de terceiros, os que possam ser de algum modo ofensivos aos seus autores.

Segundo penso, ao falar dos temores "reginaduartistas" de Gullar e da indigestibilidade das crônicas dele, o seu comentário se enquadra no ítem (4).

Caso se tratasse de um comentário a um texto meu, eu o teria publicado e respondido, sem problemas.

Contudo, não posso expor os autores cujo texto publico a serem, por causa dessa publicação, isto é, por minha culpa, sequer minimamente ofendidos no meu blog.

Atenciosamente,
Antonio Cicero"

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Um comentário no “Acontecimentos”

Em seu ótimo blog, o poeta Antonio Cicero reproduz e elogia um artigo recente de Ferreira Gullar. Tomei a presunçosa liberdade de lhe propor o comentário abaixo.

"Prezado Antonio Cicero, em minha primeira participação neste espaço, que acompanho e divulgo há tempos, ouso discordar de sua posição.

Quem tem estômago para acompanhar as crônicas de Ferreira Gullar já percebeu que seus temores "reginaduartistas" possuem muito do autoritarismo que o grande poeta parece enxergar apenas nos adversários.

O maior equívoco do artista que se manifesta politicamente é acreditar (ou, pior, fingir) que não existem disputas reais e objetivas em curso, como se o desmesurado antilulismo não refletisse também, por exemplo, o elitismo antidemocrático de uma parcela muito específica do espectro político-partidário. Apontei esse vício num texto que Caetano Veloso respondeu com virulência - mas, felizmente, chegamos a termos razoáveis.

Parece-me esquisito querer impedir que um projeto político respaldado pelo voto seja refletido nos escalões inferiores da administração. O “aparelhamento” da máquina pública seria melhor se, em lugar de sindicalistas, os beneficiados fossem burocratas ligados a investidores estrangeiros? Como alguém pode repudiar os planos hegemônicos do PT, se a única maneira de impedi-los (não sejamos ingênuos) pressupõe a eleição de um quadro do PSDB, que há quase duas décadas reproduz o mesmo predomínio no Estado de São Paulo? É possível falar na truculência ou no populismo de Dilma Rousseff tendo José Serra como alternativa?

Claro que aqui a questão do “golpismo” soa um tanto forçada. Mas a discussão ganharia muito se a continuidade do projeto de poder fosse tratada como uma opção democrática e legítima, e se as análises parassem de enxergar na aprovação a Lula apenas a manifestação da ignorância popular ou da esperteza do demagogo.

Receba um abraço deste grande admirador."

terça-feira, 24 de novembro de 2009

O pretexto Ahmadinejad


A camada mais visível das críticas à visita do presidente iraniano remonta à política de “fatos consumados” financiada por Israel junto aos meios de comunicação internacionais. Resumindo, trata-se de utilizar o Holocausto como salvo-conduto para as pretensões expansionistas do governo israelense.

No substrato dessa novela muito reprisada, esconde-se o atribulado contexto geopolítico americano, talvez no momento mais delicado desde as redemocratizações nacionais. Não há qualquer coincidência, muito menos condenação possível, no fato de os interesses estadunidenses serem contrariados quando o governo Obama permite um golpe de Estado no continente e instala bases militares para policiá-lo.

O discurso dos direitos humanos serve a conveniências hipócritas. Se observado o sofrimento das minorias e de inocentes, nenhum governante do planeta seria recebido em qualquer país. Transformar diplomacia em panfletagem étnica esconde interesses que, estes sim, podem levar a consequências muito desastrosas.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O caráter porcino

Publicado na revista Caros Amigos, em novembro de 2009.

Alguns comentaristas orgulham-se em qualificar sua oposição ao governo Lula como “espírito de porco”. A expressão dispensa comentários: calcada na suposta lucidez contestadora, tenta dissimular (e pateticamente evidencia) uma essência antidemocrática muito semelhante à do udenismo golpista dos anos 1960.

O fenômeno tem porta-vozes identificáveis, por exemplo, nas tentativas de politização da tragédia com o avião da TAM, dois anos atrás. Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo (Veja), Dora Kramer (Estadão), Ali Kamel (Globo), Jorge Forbes, Márcia Tiburi e Betty Lago (GNT), Míriam Leitão e Merval Pereira (CBN), Eliane Cantanhêde e Danuza Leão (Folha) responsabilizaram as autoridades federais, antes de qualquer investigação, aproveitando a dor generalizada para pedir o afastamento de ministros e até do presidente da República. Certo Francisco Daudt chegou ao cúmulo de afirmar que “o governo assassinou mais de 200 pessoas”.

Esses personagens promovem muitas outras unanimidades abjetas, escorados na pretensa modernidade do conservadorismo cínico e moralista que já alcança hegemonia mundial. À parte os vícios ideológicos e o proselitismo partidário, suas mensagens são perigosas porque, misturando pruridos elitistas, fascínio cosmopolita e farisaísmo ético, resultam em desprezo pelas instituições republicanas.

Esse subtexto explica porque o discurso porcino soa tão uniforme, embora cheio de contradições. Há uma lógica nefasta em atacar ao mesmo tempo as mordomias e as festas juninas palacianas, o “bolsa-esmola” e os privilégios do capital, o nacionalismo e a subserviência, as impropriedades verbais e o destaque internacional de Lula. Trata-se de negar a própria legitimidade do mandatário que comete a ousadia de ser “popular” (na dupla acepção da palavra), revelando um país que seus adversários detestam.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O espetáculo reacionário


Publicado no Mundo Mundano.

A legislação antifumo é um ardil genial da campanha de José Serra a presidente. O amplo apoio midiático transformou-a em bandeira cívica, atraindo a simpatia do contribuinte desinformado. Assim ninguém reclama por financiar uma propaganda milionária, mistificadora e falsamente institucional, em meio a tantas carências que maltratam o Estado. Até militância gratuita o governador recrutou, com seus “carrascos voluntários” unidos em milícias de dedos-duros e fiscais de costumes.

O teatro dos expurgos saneadores é característico de contextos totalitários. Vazia de referências éticas, a classe média urbana apresenta-se como vanguarda do salvacionismo despótico. Quem ousa questionar o consenso estabelecido vê-se desmoralizado como agente de interesses obscuros, enquanto os defensores da lei parecem inocentes e desapegados. Afinal, defendem um fantasioso “bem coletivo”, com embasamento pretensamente científico, sob nauseante omissão do Judiciário.

Os proibicionistas têm suas razões para evitar uma discussão honesta sobre o tema. Em circunstâncias democráticas, a opinião pública saberia que há fumódromos permitidos e eficazes em quase todos os países europeus e sul-americanos. E seria convidada a entender por que o veto a áreas reservadas restringe-se aos poucos lugares que ainda sustentam a fracassada política antidrogas imposta pelos EUA.

Campanhas verdadeiramente educativas não tratariam o usuário como imbecil, sufocando-o com paranóias e mistificações implausíveis. Qualquer adolescente sabe que a ridícula demonização do cigarro baseia-se em critérios vagos e arbitrários, pois é impossível creditar mortes ao tabaco (ou a qualquer substância) isoladamente, sem considerar uma complexa rede de variáveis, inclusive genéticas e ambientais. Um único fumante longevo derruba todo preconceito. E, dependendo de como se utiliza as estatísticas, o colesterol, o álcool e a poluição viram genocidas a serem exterminados.

Mas é fácil (e perigoso) confundir ciência e moral. A histeria antifumo, com seus jargões infantis e o bom-mocismo hipócrita, usa a defesa da salubridade para blindar-se contra o verdadeiro debate. A louvável e necessária proteção de não-fumantes pode conviver com áreas reservadas ou mesmo estabelecimentos inteiros onde seja possível fumar, desde que o público disponha de informações para escolher. O que se pretende, no entanto, é banir o fumo através de sua gradativa criminalização.

A discutível melhoria da saúde pública será irrelevante perto do retrocesso que a lei impõe aos direitos individuais: a pessoa deixa de deliberar sobre seu corpo e sua propriedade, submetendo-os ao humor dos legisladores. O conceito de espaço coletivo foi desfigurado para permitir a ingerência estatal sobre a liberdade de trânsito e convivência dos cidadãos.

Por seu caráter dissimulado e intransigente, essa legislação representa uma decadência no atribulado processo da redemocratização brasileira. E não apenas ao instituir um recuo doutrinário na evolução histórica de descriminalização das drogas e respeito ao foro privado. Trata-se de medida flagrantemente inconstitucional porque, além das violações jurídicas pontuais, fere predicados básicos da cidadania. A tolerância generalizada a tamanha arbitrariedade revela muito do conservadorismo galopante que ameaça entrevar o milênio recém-iniciado.

sábado, 7 de novembro de 2009

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Giuseppe Ungaretti (1888-1970)



Manhã
Santa Maria La Longa, 26 de janeiro de 1917

Ilumino-me
de imenso
_________

A noite bela
Devetachi, 24 de agosto de 1916

Que canto levantou-se esta noite
que entretece
com o cristalino eco do coração
as estrelas

Que festa vernal
de coração em núpcias

Fui
um charco de trevas

Hoje mordo
como uma criança a teta
o espaço

Hoje estou bêbado
de universo

Tradução Geraldo Holanda Cavalcanti

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A Mostra cansada


Tenho nas paredes cartazes de antigas Mostras de Cinema de São Paulo: a de 1997, com o “homem câmera” de Angeli, as árvores azuis de Alexander Sokurov (2002), o desenho vermelho de Manoel de Oliveira (2006). Nestas e em outras ocasiões lá estive, com o crachá pendurado, catálogo no sovaco, arsenal de balas e caderninho de anotações. Sim, sou desses malucos da sala escura, membro da eclética fauna que freqüenta as projeções mais absurdas como se participasse de uma confraria secreta.
Morando e trabalhando longe, cometi insanidades pela cinefilia. Certa vez, fui de Rio Claro à capital em uma hora e meia (não tentem reproduzir isto em casa) para não perder um filme. Nem gosto de lembrar as multas por estacionamento irregular e os ataques histéricos no trânsito provocados por uma exibição iminente.
Devo muito às seleções de Leon Cakoff. Por seu intermédio descobri Hal Hartley, Jim Jarmush, Sokurov, Michael Haneke, Lars von Trier e todo o Dogma, os primeiros Kieslowskis, uns raríssimos Bergmans e uma constelação de documentários inacessíveis.
Agora canso apenas de imaginar a viagem, os congestionamentos, a correria, as filas, os percalços de organização, a concorrência dos credenciados. A experiência como diretor da Cinemateca Campineira ensinou-me a valorizar incondicionalmente o sucesso e a longevidade da Mostra. Mas não há como ignorar que ela se tornou insuficiente para a metrópole caótica, além de obsoleta perante a voracidade do circuito comercial, do mercado digital e até da pirataria.
A Mostra escaparia da saturação se redimensionasse sua estratégia de exibição (descobrindo espaços suficientes para abrigar as grandes estréias), se revitalizasse as retrospectivas nacionais, autorais ou temáticas, se promovesse conferências e debates mais audaciosos com autoridades do mundo cinematográfico e se levasse parte da programação para regiões carentes e cidades próximas, ávidas por eventos culturais.
Aceitar passivamente as limitações desse formato consagrado levará, em pouco tempo, à decadência que já acomete outros festivais brasileiros.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Carta aos petistas: momento de reagir

Publicado na revista Caros Amigos, em outubro de 2009.

Se quiser manter alguma esperança de eleger Dilma Rousseff em 2010, o PT precisa mobilizar-se imediatamente. A supervalorização da popularidade do presidente Lula mergulhou o partido numa apatia condescendente, agravada por conflitos internos vazios e desagregadores.
A visibilidade midiática de críticos e desertores, sob o silêncio dos governistas, fortalece o mito da desilusão do petismo histórico. Urge conclamar intelectuais, artistas e demais celebridades a posicionamentos públicos sobre a campanha presidencial, demonstrando comprometimentos pessoais inequívocos.
À militância cabe posicionar-se imediatamente acerca de uma eventual coligação com o PMDB. Ela será decisiva para as chances eleitorais de qualquer candidato, e não apenas graças aos importantes minutos nos horários eleitorais. Alianças de envergadura nacional costumam ser indigestas e exigem condescendências; seus limites merecem discussões pragmáticas, livres de purismos ideológicos.
Um pedido aos senadores e deputados do PT: abandonem a pantomima da indignação tardia. Se o fardo é insuportável, tenham a honradez de entregar os cargos de seus correligionários em todos os escalões do governo e iniciem um novo projeto político. Mas, em nome da transparência, ou por simples espírito republicano, parem de agir como se não soubessem o que está em jogo.
Apropriando-se das conquistas da administração atual, com a vitrine da Copa do Mundo, José Serra seria facilmente reeleito presidente. Depois, as fortunas advindas do pré-sal financiariam também seus sucessores, perpetuados num período inimaginável de continuísmo. Mesmo que então surgisse uma nova liderança progressista viável, os danos da hegemonia tucana já estariam irremediavelmente consolidados.
Essa é uma forma indigna de desperdiçar todos os esforços gastos em quase trinta anos de lutas e sacrifícios.